De Bruxelas irradiam sempre notícias que enchem os europeus de esperança. Sejam elas sobre uma nova regulação, um novo imposto, uma série de novos fundos ou simplesmente uma sinalização de virtude de que estamos quase, mesmo quase, a conseguir reverter o curso de um mundo que entrará brevemente em ebulição. Esse quase, é claro, traduz-se quase sempre em mais uma amarra na competitividade europeia. Mas esta semana foi ligeiramente diferente. Federica Mogherini, ex-vice-presidente da Comissão Europeia e ex-alta representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, foi formalmente acusada de fraude e corrupção em contratos públicos, conflito de interesses e violação do sigilo profissional, de acordo com a Reuters.
A italiana já admitiu acreditar na justiça e demonstrou-se naturalmente disponível para colaborar com as autoridades. A procissão ainda vai no adro e, até à conclusão do processo, Mogherini é inocente. Mas é inegável que se trata de uma forte machadada na credibilidade das instituições europeias que, mesmo que ainda gozando de apoio maioritário, muitos cidadãos europeus começam a dar mostras de cansaço perante um polvo burocrático que teima em apertar o seu controlo, sacrificando no processo, de forma mais ou menos constante, a liberdade individual.
Afinal, temos lido e ouvido praticamente em uníssono nos últimos tempos, todas as maleitas das quais a Europa padece podem ser resolvidas com o elixir mágico que combina ‘mais integração’ com ‘aprofundamento’. Só assim, corroendo a pouco e pouco as características nacionais intrínsecas ao Velho Continente com a paz perpétua no horizonte, podemos ser competitivos neste novo mundo. Mas parece evidente que um aparelho burocrático hipertrofiado, uma regulação asfixiante e uma paralisia política de fazer corar as comunidades políticas mais ineficientes são os ingredientes fundamentais de um cocktail implosivo. E se à mistura adicionarmos doses generosas de fraude e corrupção, nem o mais resistente dos fígados será capaz de suportá-lo.
Entretanto, enquanto os edifícios que compõem a nossa herança civilizacional são reduzidos a ruínas, vistos como meros artefactos cuja única função é meramente arqueológica num mundo de betão e vidro, Bruxelas continua a sorrir envergonhadamente enquanto continua a levar avante uma degradação incompreensível. Mas se for em nome do General Will rousseauniano, que mascarado de progresso só nos tem acorrentado, quem somos nós para julgar? Neste sentido, importa recordar uma passagem de Russell Kirk, que escrevia o seguinte num famoso ensaio (Prescription, Authority, and Ordered Freedom): «O que vemos na nova elite (…) não é uma predominância das naturezas superiores, mas um domínio de fanáticos jacobinos, quase todos desprovidos de dotes morais superiores. Este é o regime de uma horda de oligarcas sórdidos. Entre eles não há profetas nem poetas; a única qualificação para entrar nesta elite é a astúcia implacável na luta pelo poder puro». A escrever em 1964, Kirk não se referia naturalmente à elite da União Europeia, que ainda dava os primeiros passos; descrevia, isso sim, a nomenklatura da União Soviética. Qualquer semelhança deve ser pura coincidência.
Sigamos então o conselho de Schiller, cujo poema inspirou a composição da nona de Beethoven: «Ó, amigos, mudemos de tom! / Entoemos algo mais prazeroso / E mais alegre!». No fim, tudo ficará bem. Ou assim Bruxelas ingenuamente, e com o grandeur moral característico, espera. Porque, e como escreveu de forma mordaz Jean-François Revel no Le Point em 1984, «nas últimas décadas, tem-se observado uma separação, para não dizer rutura, entre a complexidade do mundo e a simplicidade do poder político».