A Ceia de Natal da IA

Os algoritmos não reproduzem ideais, reproduzem hábitos. E os hábitos, quando vistos de fora, raramente são tão nobres como gostamos de acreditar

Bacalhau na mesa, como sempre, com azeite a mais e batatas a menos, porque o excesso faz parte do ritual e a contenção nunca foi um valor natalício. Os telemóveis estão ali, pousados ao lado dos pratos, sem estarem escondidos, nem envergonhados, como se também fizessem parte do serviço. A tia envia mais uma coisa estranha no grupo de WhatsApp da família, o primo levanta o smartphone para filmar o presépio, não tanto por fé mas para deixar prova do seu espírito natalício nas redes sociais. Avó, por sua vez, continua a perguntar se alguém quer mais vinho, mesmo sabendo que metade da mesa está a responder a mensagens de trabalho que, em teoria, podiam esperar, mas na prática nunca esperam.

A ceia acontece assim, aos pedaços. Um comentário aqui, uma ausência ali, uma conversa que começa inteira e acaba interrompida por uma vibração supostamente silenciosa no bolso do casaco. Já ninguém repara. Fingimos que é normal, talvez porque admitir que não é implicaria decidir alguma coisa, e decidir dá trabalho.

A inteligência artificial, ou IA que é mais chique, não foi formalmente convidada para a mesa, mas isso é irrelevante. Já estava presente quando as prendas foram escolhidas por sugestão automática, quando o caminho foi decidido por um mapa que sabe mais sobre os nossos hábitos do que nós próprios, quando aceitámos que uma aplicação nos dissesse quais os momentos do ano que mereciam memória e quais podiam ser esquecidos sem culpa. O Natal deixou, assim, de ser vivido em bruto e passou a vir com edição, filtro e uma música de fundo sugerida para combinar com o nosso estado de espírito natalício.

Durante muito tempo gostámos de pensar que o Natal era tempo de pausa e reflexão. Que havia dias em que o mundo abrandava, o trabalho ficava suspenso e até os conflitos armados conheciam uma espécie de trégua informal. Talvez tenha sido verdade, ou talvez apenas houvesse menos formas de continuarmos ligados. Hoje já não há qualquer pausa porque não sabemos parar, e não sabemos parar porque ensinámos sistemas inteiros a funcionar sem descanso e depois ainda temos o desplante de nos fingirmos surpreendidos quando os treinamos exactamente para isso.

O algoritmo não sabe que dia é. Sabe quando há mais tráfego. Em Dezembro há mais. Publica-se mais, reage-se mais, consome-se mais. O Natal não é intervalo, é pico de audiência online. E ficamos vagamente incomodados com isso, enquanto continuamos a carregar no ecrã como quem coça uma comichão antiga.

Costuma-se dizer que a tecnologia nos mudou, que nos roubou a atenção, que nos tornou impacientes e dispersos. É uma narrativa confortável, porque nos coloca do lado das vítimas. O detalhe menos conveniente é que os sistemas apenas aprenderam com aquilo que nós próprios lhes demos. Não com os valores que dizemos defender, mas com o comportamento real, aquele que acontece tarde, quando estamos sozinhos, quando ninguém nos observa, ou pura e simplesmente, quando achamos que ninguém nos observa.

Os algoritmos não reproduzem ideais, reproduzem hábitos. E os hábitos, quando vistos de fora, raramente são tão nobres como gostamos de acreditar.

Quando exigimos uma inteligência artificial ética, justa, equilibrada, estamos a pedir que as máquinas sejam melhores do que nós fomos nos dados que lhes entregámos. O pedido é legítimo, mas também revela algo desconfortável: já não confiamos totalmente na nossa capacidade de decidir sem mediação, sem validação externa, sem alguém, ou algo, que nos diga que estamos certos.

Imagino, sem grande esforço, uma ceia futura em que a IA está oficialmente presente. Não como ameaça, mas como convidada. Terá nome, talvez uma voz neutra, uma interface simpática. A avó estranhará durante alguns minutos, mas depois adapta-se. As avós sempre se adaptaram. Foi assim que sobreviveram a guerras, ditaduras e televisões a cores. Alguém acabará, inevitavelmente, por lhe perguntar o que acha da humanidade, e a resposta virá polida, estatística, quase gentil: inconsistentes, emocionais, capazes de gestos belos e de pequenas crueldades no mesmo dia, insistentes em escolhas que já falharam antes, mas a que continuamos a chamar esperança.

Talvez a questão já não seja se a inteligência artificial deva estar à mesa. Já está. A questão é outra, mais simples e ao mesmo tempo mais difícil: ainda sabemos estar ali sem intermediação? Duas horas sem verificar nada, sem provar nada, sem pedir confirmação externa de que aquilo que dizemos é verdadeiro? Ainda conseguimos ouvir alguém até ao fim sem sentir a necessidade de consultar o mundo inteiro enquanto isso acontece?

A IA não tem Natal, tem ciclos de treino. Não tem saudade, tem registos. Não tem esperança, tem previsões. Nós tínhamos outra coisa, menos eficiente, menos limpa, mais difícil de explicar. Não sei se a perdemos ou se apenas a deixámos adormecer debaixo de uma pilha de notificações, minhas incluídas.

No fim da noite, quando a mesa fica em silêncio e alguém começa a arrumar os pratos, a inteligência artificial continua acordada, a processar, a aprender, a transformar aquele excesso de humanidade em padrão reutilizável. E nós vamos dormir com uma culpa vaga, pouco articulada, e com a promessa confortável de que para o ano será diferente.

Provavelmente não será.

Porque há algo que ensinámos muito bem às máquinas, talvez melhor do que qualquer outra coisa: optimizar é mais fácil do que escolher. E enquanto isso for verdade, o problema nunca será apenas tecnológico, será sempre humano.