O Matuto e o Réveillon

Entre um fogo de artifício e outro, suspende-se o pensamento crítico, essa inconveniência anti-festiva. E assim se entra no ano novo limpo por fora, confuso por dentro e feliz por decreto

O Matuto não dá muita bola ao “réveillon”. As celebrações do Ano Novo, passam-lhe olimpicamente ao lado. No Brasil, país que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio, o “réveillon” é coisa séria. As cidades esvaziam-se e as praias entopem de gente. As ruas de São Paulo – com 16 faixas de rodagem em cada sentido – viram um deserto asfaltado. Cena de filme apocalíptico! Famílias alugam casas à beira da praia. Todos acalorados esfalfam-se em sofás, bebendo suco (sumo) gelado ou cerveja, passando cubos de gelo pela testa ou alimentando a renite no ar-condicionado. Há “réveillon” nos condomínios de luxo, nas favelas, na laje, na praia, no mar, nas piscinas, nas ruas. Há “réveillon” no Bahia com os trios eléctricos. Há “réveillon” em Copacabana com magotes de gente nos bares, e arrastões nas areias douradas pejadas de banhistas. Há “réveillon” no Recife, em Porto Galinhas, em Fortaleza, em Manaus, nos afluentes do Rio Amazonas. Essencial, mesmo, é o “réveillon” acontecer perto dum corpo líquido. Por esta altura do ano o “réveillon” ganha raias de paroxismo.

Enquanto o Brasil inteiro se prepara para mergulhar em líquidos — salgados, clorados ou alcoólicos — a Casa das Pontes continua firme em terra seca. A varanda está aberta, a piscina cintila, o calor é honesto e o chá do Matuto fumega com dignidade britânica, apesar da latitude.

— Eu nunca percebi — diz o Matuto, acomodando-se na cadeira de palhinha — por que razão o ano novo exige mergulho de roupa branca. Parece baptismo sem arrependimento.
A Belinha, a visita conservadora das Pontes, ajeita a blusa branca — branca, pois está claro — e explica, com ar de quem cita uma tia-avó falecida: — O branco é paz. É para começar o ano limpinho. Sem mancha. — Limpinho por fora — atalha o Marcello, a visita reacionária das Pontes, atento às campanhas publicitárias e aos slogans com pretensões morais — porque por dentro continua tudo igual. Agora já nem se entra com o pé direito. É pé neutro. Pé ideologicamente certificado. Um pé que pisa ovos para não ofender o Governo.

— Pé esquerdo, queres tu dizer — murmura o Matuto. — Vi isso das Havaianas. (ler aqui) Um escândalo pedagógico. Até o calçado resolveu reeducar o povo. Antes fazia calos; agora faz militância. Só falta o selo do MEC na sola. Uma pausa e o Matuto concluiu, sério: — Eu, por via das dúvidas, passarei a comprar chinelos Ipanema. O nome ao menos lembra mar, não comício. O Sr. Rocha, a visita letrada das Pontes, pigarreia, como quem pede licença ao século XVIII: — Estas prácticas têm raízes antigas. O branco vem das religiões afro-brasileiras, o mergulho é rito de passagem, o beijo à meia-noite… — Ah, o beijo — interrompe Dona Sirlei, a gentil esposa do Matuto, com um sorriso cúmplice. — Hoje é escancarado, mas houve tempos em que era pura engenharia muscular. Dois orbiculares em contracção estratégica. — Justaposição técnica — confirma o Matuto. — Beijo sem alma para não acordar a libido. O “réveillon” era despertar, mas ninguém despertava nada. Tudo recatado, tudo muito casto.

A Belinha suspira, nostálgica, a bebericar o seu Porto Ferreira Branco: — Lembro-me de quando diziam que a primeira coisa do ano marcava o resto desse ano. — Pois — diz o Matuto. — Crianças a comer gelado (sorvete, no Brasil, por favor) logo de manhã, adultos a montar a cavalo, outros a berrar música. Resultado? Continuamos todos a trabalhar demais, a falar alto e a derreter por dentro. O Sr. Rocha sorri, coçando a careca: — O homem gosta de iludir-se com datas. Como se o tempo obedecesse ao calendário. — Ilusão colectiva — acrescenta o Marcello. — Um delírio com fogos de artifício, patrocinadores oficiais e alegria regulamentada. O Marcello está em modo Dirty Harry; “make my day, punk!” – matuta o Matuto. Houve um breve silêncio. Lá longe, ouvia-se o estardalhaço do fogo de artifício, contagens regressivas e uma felicidade obrigatória, fiscalizada por drones do Planalto.

O Matuto ergue a taça de champanhe e diz, com voz mansa: — Eu cá contento-me com pouco. Um aperto de mão honesto: “bom ano”. Um abraço sem coreografia. Um beijo singelo, sem foguetório. Um brinde discreto: “que as doenças fiquem longe, que os amigos fiquem perto e que a família não se canse de nós”.

Dona Sirlei assentiu: — Nem mais nem menos. — Viva 2026 — alegrou a Belinha. — Sem campanhas esquerdistas bacocas — resmungou o Marcello. O Sr. Rocha concluiu, com ar de rodapé de livro antigo: — Às vezes, desejar o bem já é um acto revolucionário.

O Matuto sorriu. Lá fora, o mundo entrou no ano novo aos mergulhos, vestido de branco e a divagar a cores. O “réveillon” tornou-se a liturgia oficial de um país que já não acredita em redenção, mas adora purificação simbólica. Veste-se de branco para fingir virtude, pula onda para fingir mudança, bebe para não pensar, e canta alto para não escutar o vazio da alma. O “réveillon” virou anestesia colectiva! O poder agradece: um povo a saltar ondas não tem disposição para perguntar quem lhe empurrou o pé — esquerdo, e obediente. Entre um fogo de artifício e outro, suspende-se o pensamento crítico, essa inconveniência anti-festiva. E assim se entra no ano novo limpo por fora, confuso por dentro e feliz por decreto.