Entrar numa biblioteca antiga, numa loja de alfarrabista, num arquivo ou num sótão cheio de livros é uma experiência olfativa que pode deixar muitos indiferentes. Para outros, porém, vai muito além da simples identificação do cheiro de papel envelhecido e de materiais antigos, convocando memórias, imagens e afetos que se cruzam com a passagem do tempo e com as vidas anónimas que esses objetos silenciosos guardam.
Para esta experiência emocional, nostálgica e melancólica, o escritor norte-americano John Koenig cunhou, há alguns anos, o termo vellichor, no âmbito do projeto The Dictionary of Obscure Sorrows. O neologismo sugere uma ligação ao termo ‘velino’, que designa um tipo de pergaminho de pele de vitelo, usado em manuscritos antigos. O sufixo -chor não corresponde a uma raiz etimológica precisa, mas remete para o grego ichor, o fluido divino que corria nas veias dos deuses, funcionando como metáfora do cheiro dos livros antigos enquanto ‘essência’ viva da sua memória e do tempo neles inscrito.
Essa sensibilidade para o cheiro dos livros envelhecidos não passou despercebida aos produtores de velas aromáticas. Há marcas que vendem produtos com nomes como Bibliothèque, A Night at the Library, Old Bookshop ou Livres Anciens. Outras vão ainda mais longe, criando fragrâncias supostamente evocativas de autores e de obras específicas, como Charles Dickens e Marcel Proust, ou O Monte dos Vendavais e O Grande Gatsby, mas não é hoje esse o assunto desta coluna.
O cheiro característico dos livros antigos resulta do envelhecimento progressivo dos materiais que os compõem. Com o passar do tempo, o papel, as tintas e as colas sofrem processos de degradação que libertam para o ar uma série de compostos orgânicos voláteis (COV). O papel é constituído sobretudo por celulose, e, em menor quantidade, por lignina, ambos polímeros naturais constituintes da madeira. A lignina liga as fibras de celulose, conferindo rigidez às árvores, mas é instável ao longo do tempo. Da sua degradação resultam ácidos que contribuem para o amarelecimento do papel e para a decomposição da celulose. Estas reações químicas produzem uma vasta gama de COV, que se libertam gradualmente e são percecionadas pelo olfato. Importa salientar que os papéis mais antigos, sobretudo até finais do século XVIII e início do XIX, eram maioritariamente feitos de trapos de algodão ou linho, com pouca ou nenhuma lignina, razão pela qual envelhecem melhor.
Entre as substâncias mais frequentemente identificadas no cheiro dos livros antigos encontra-se a vanilina, um dos muitos compostos responsáveis pelo aroma natural da baunilha e amplamente usada como aromatizante alimentar, graças à possibilidade de produção industrial, nomeadamente a partir da lignina da indústria do papel; o benzaldeído, cujo cheiro é semelhante ao da amêndoa amarga; o etilbenzeno e o tolueno, que conferem notas doces, e compostos como o furfural, também presente no café, associado a notas de torrefação. Surgem ainda certos álcoois e cetonas, como o 2-etil-hexanol, que acrescentam tonalidades florais ou ligeiramente amadeiradas.
A combinação destas substâncias cria um perfil olfativo complexo, não existindo um único ‘cheiro de livro antigo’. O aroma varia consoante o tipo de papel, a qualidade das tintas e das colas, bem como as condições ambientais a que o volume esteve sujeito, como a humidade, a temperatura ou a exposição à luz. O cheiro de biblioteca nasce, assim, do encontro das múltiplas assinaturas químicas dos seus livros, moldadas pela sua história material. É hoje possível avaliar o estado de conservação de livros antigos, e até a sua idade, através da monitorização das concentrações dos compostos que emanam para o ar.
Para além dos compostos da lenta química do tempo, o cheiro de um livro guarda ainda os hábitos de quem o manuseou, como se tivesse absorvido fragmentos da sua vida quotidiana. Fumar, comer ou beber enquanto se folheia um volume pode conferir-lhe odores próprios, tal como uma flor esquecida entre as páginas. A presença desta, porém, diz também algo da sensibilidade de quem ali a deixou – um gesto mínimo, esse sim, resistente ao tempo.