Eduardo Gageiro: ‘Fidel disse-me que eu até lhe fazia a fotografia do bilhete de identidade’

Conseguiu pôr um cão ao colo de Cavaco e que Champalimaud calçasse umas luvas de boxe, mas não cumpriu o sonho de fazer um retrato de Fidel Castro. Apesar disso, anda sempre com uma fotografia do Comandante na carteira, para os amigos não lhe chamarem mentiroso. Natural de Sacavém, onde começou a trabalhar aos 12…

Foi precisamente aqui, na Fábrica de Loiça, que começou a trabalhar. O que fazia?

Andava de secção em secção a distribuir papéis. Depois comecei a escrever à máquina, a preencher facturas. Mas odiava números – e continuo a odiar. Tinha sempre fotografias na gaveta que coloria à mão. Aparecia o chefe atrás de mim e dizia: ‘Isto não é uma loja de fotografia, é um escritório!’. Mas não foi assim tão negativo, porque passei a ter um contacto mais intenso com os operários e conheci uma série de artistas.

Que também trabalhavam na fábrica?

Sim. Comecei a relacionar-me especialmente com o Armando Mesquita. Era escultor e interessou-se por mim. Eu mostrava-lhe as fotografias, e um dia ele diz-me: ‘Tens jeito, mas não percebes nada de composição. Tens de ir ao meu ateliê, que eu dou-te umas lições’. A primeira coisa que fez foi um rectângulo cheio de quadradinhos. ‘Isto é a regra de ouro. O motivo principal tem de estar aqui, de preferência do lado direito, porque a vista tem tendência a ir para a direita’. E também foi ele que convenceu o meu pai a comprar-me a primeira máquina.

Como foi isso?

O Armando Mesquita chega lá um dia à hora do almoço e diz: ‘Ó sr. Gageiro, então o sr. não tem vergonha? O seu filho anda aí a tirar fotografias com máquinas emprestadas!’. O meu pai ficou um bocado chateado e mandou-me saber o preço de uma máquina. Fui à J. C. Alvarez, onde comprava rolos para as máquinas dos outros, e o Amadeu Ferrari, que era pai do Nuno, disse-me: ‘Tens aqui uma Rolleicord e uma Rolleiflex. A Rolleicord custa praticamente metade do preço’. E eu: ‘Vou dizer ao meu pai quanto é’. ‘Leva já a máquina’. Veja como teve confiança num puto de 16 ou 17 anos. E lá venho eu na camioneta da carreira a mudar as velocidades e as aberturas.

Lembra-se das primeiras fotografias que fez?

Estreei logo a máquina com retratos do Armando Mesquita. Fiz também uma fotografia muito rebuscada de uma prima minha e mandei-a para o primeiro concurso fotográfico de empregados de escritório do distrito de Lisboa. E não é que ganhei logo três prémios? Foi assim que começou a bola de neve.

Começou a trabalhar muito cedo. Como foi a sua infância?

Foi uma infância normal, não passei fome, nem pouco mais ou menos, mas os meus pais não tinham tempo para mim. Quem me criou praticamente foi uma tia que morava ali ao pé. Eu passava a vida ao colo dos velhos operários que chegavam ao fim da tarde para beber mais um copo, às vezes muito bêbedos, quase me deixavam cair.

Viveu toda a vida em Sacavém?

Nasci exactamente a 50 metros daqui, do lado de lá da estrada. O meu pai tinha uma casa de pasto onde os velhos operários iam com as marmitas para a minha mãe aquecer num fogão enorme. Almoçavam o que tinham trazido e consumiam uma pequena garrafa de vinho, aquilo a que se chamava um pirolito.

Passava muito tempo na casa de pasto?

Sim. Quando saía da fábrica ia para lá. Quando era mais crescido o meu pai punha-me no balcão a aviar. Aviava copos de três, como se dizia antigamente, e ao fim-de-semana fazia almoços.

Quando entra para os jornais?

Ir para os jornais era muito difícil porque havia uma máfia de maus fotógrafos que não deixavam ninguém entrar. Eram quatro ou cinco que trocavam fotografias entre si e tinham mais poder que os chefes de redacção. Eu tentei, mas não consegui. Entretanto um amigo de infância, o Mário Ventura, que estava no Diário Popular, organizava uns jantares com jornalistas e um dia convida-me para ir. Estavam lá os craques: o Urbano Carrasco, o Dr. Tavares Rodrigues, muitos. Ele apresenta-me e eu manifesto interesse em ir para os jornais. O Dr. Tavares Rodrigues diz-me: ‘Apareça no Diário Ilustrado e leve fotografias suas’. Eu levei e ele gostou. ‘Se quiser venha já amanhã’. E fui.

Que idade tinha?

Uns 20 anos.

Deixou o emprego na fábrica?

O meu pai queria bater-me porque eu tinha abandonado um emprego certo. E a minha mãe, coitadinha, dizia-me assim: ‘Mas tu não tens necessidade de ser fotógrafo. Podes ser empregado de escritório’.

Como foi a entrada no jornalismo?

No primeiro dia do Diário Ilustrado sentei-me na redacção com a minha máquina e um flash, e aparece um fotógrafo. ‘Quem és tu?’. Na altura eu era muito tímido. Olho para ele e digo: ‘Eu sou fotógrafo’. ‘És fotógrafo?! Vais mas é para o laboratório revelar as nossas fotografias’. E lá fui eu para o laboratório muito frustrado, fazer as fotografias dos outros: conferências de imprensa, inaugurações, o Salazar, o Thomaz, coisas horrorosas. Mas teve de bom que era o sítio onde estavam os linotipistas, os gráficos, malta fixe.

Como era o ambiente?

Tanto na redacção como nas oficinas era tudo malta cinco estrelas, malta séria, trabalhadora, responsável, solidária, faziam grandes almoçaradas. Não tenho a mesma opinião dos fotógrafos.

Como saiu dessa situação?

Numa dada altura telefonam-me para ir à redacção e levar a máquina. Não tinham fotógrafo para fazer um trabalho e lembraram-se de mim. ‘Não havia aí um miúdo, o que é feito dele? Deixei de o ver’. ‘O João não o quer cá’. ‘O João não o quer cá?!’. Isto soube eu depois. Fui fotografar o Ferreira de Castro para o suplemento literário. Fiz uma série de fotografias e depois sugeri: ‘Não se importa de ir para aqui, para ali, disse que costumava escrever acolá…’. Até tirei fotografias às mãos. Revelei o rolo com todo o carinho – um rolo meu – e mandei-o para a redacção.

Gostaram do trabalho?

Sou chamado ao director e ele diz-me: ‘As tuas fotografias são diferentes. Tu é que passas a ser o fotógrafo do suplemento literário’. Era o que eu queria ouvir. Criei uma amizade com os redactores, que eram professores universitários e grandes intelectuais. O meu pai não me mandou estudar, só fiz a instrução primária, a minha sorte foi o grande contacto que tive com esses grandes pintores, escultores, poetas, escritores, que me davam livros. Essa gente é que me amparou e fez com que eu evoluísse. Por isso, quando fui para o Século Ilustrado, a primeira coisa que fiz foi pôr jovens a colaborar comigo.

Foi nessa época que fotografou escritores como Jorge de Sena, Miguel Torga e Cardoso Pires?

Conheço o Cardoso Pires desde o Diário Ilustrado e criámos uma amizade fantástica. Ele trabalhava numa revista que era o Almanaque, graficamente espantosa, onde eu também colaborava. No primeiro livro que fiz, o Gente, pedi-lhe ajuda para fazer o texto e a selecção das fotografias. E ele ensinou-me que um livro de fotografia não pode ser só fotografias. Deve haver sempre uma pausa, com um texto, para as pessoas respirarem, onde se conta uma história. É como uma partitura musical, tem de ter ritmo. Quem me ensinou isso foi ele.

Uma das fotografias em destaque nesta exposição do Museu da Cerâmica é a do Papa Paulo VI em Lisboa. Como conseguiu que ele acenasse para si?

Eu estava na Associated Press e quando o Papa cá veio eles trouxeram uma equipa de gajos muito bons. Na véspera tivemos uma reunião e combinámos que eu ficaria o mais perto possível da tribuna. No dia seguinte, quando lá cheguei, estava um milhão de pessoas! ‘E agora? Estes gajos vão dizer que sou uma trampa’. Fiquei em pânico. Comecei a furar a multidão e consegui ir até à alameda. Não se conseguia ir mais para diante. Então vejo uma torre de uma equipa da RTP, e peço-lhes: ‘Deixa-me ir aí para cima’. ‘Não podes, não podes, que eu tenho de fazer um movimento de câmara, desculpa lá’. ‘Quando for o movimento de câmara eu baixo-me’. Lá me deixou ir. Quando o Papa passou por ali, em direcção à tribuna, eu começo a chamá-lo. ‘Paulo, Paulo!’. E ele vira-se e cumprimenta-me. A fotografia foi para todo o mundo.

No mesmo ano, 1967, esteve preso pela PIDE. Quanto tempo?

Um mês e tal. Mas marcou-me muito. Não conseguia olhar para as grades duplas, ver as borboletas e os passarinhos lá fora causava-me uma angústia fantástica. E precisamente para não ver aquelas grades virava-me para a parede. Aquilo traumatizou-me tanto que durante anos não podia estar num sítio sem ter para onde olhar. Mas não me fizeram mal.

Foi vítima de tortura psicológica?

Uma pessoa está tão partida que às tantas acaba por adormecer. Às três ou quatro da manhã acendiam as luzes todas. Acordava sobressaltado. ‘Era só para saber se você estava bem’.

Por que foi preso?

As provas que tinham contra mim não eram muito sólidas. Era eu que mandava as fotografias para o estrangeiro, mas tinha um truque. Fazia três ou quatro e tirava o rolo, guardava-o e punha um rolo novo. Só fui apanhado em flagrante delito uma vez. Havia uma comemoração do 5 de Outubro no Alto de S. João, uma coisa sem mal nenhum. A Polícia correu tudo à cacetada e eu fotografei aquilo de dentro do carro. Ir à rua era impensável. Passado um bocado aparece um grupo de legionários, PSP e PIDE, parecia um enxame em volta do carro. ‘Estou tramado’. Puxam-me do carro e pedem a máquina. ‘Não posso dar a máquina, não é minha’. Era mentira, tinha de fazer o meu jogo. ‘Então dê cá o rolo’. E eu pensei: ‘Vamos ver se isto pega’. Abro a máquina à luz do dia, rebobino e queimo o rolo todo e cá por dentro digo: ‘O gajo não reage, é porque não percebe nada de fotografia’. ‘Sr. Comandante, pode revelar o rolo, vai ver que não tem nada’. [risos]

Viveu outras situações complicadas?

Já depois do 25 de Abril, em 75, n’O Século Ilustrado pediram-me para ir a Caxias a uma manifestação pela libertação do Arnaldo Matos. Faço uma série de fotografias – até tenho uma do Durão Barroso com a bandeira do MRPP. Passado um bocado, há um energúmeno que diz: ‘Seu fascista!’. Começaram-me a bater, deram-me um pontapé que não fiquei cego por sorte. Estúpidos. Fiquei cheio de sangue, mas estava desesperado. ‘Fui para o meio dos gajos: ‘Venham um de cada vez. São uns cobardes’. Se viessem não me aguentava. E roubaram-me uma máquina com o meu nome que eu tinha ido buscar a Amesterdão à Central da Canon, antes dos Jogos Olímpicos.

De Munique, em 1972. Onde fez uma fotografia célebre do ataque terrorista.

É um documento. Nesse dia do atentado dos palestinianos aos israelitas eles fecharam a cidade olímpica aos jornalistas, não se podia entrar. Às dez e meia, já os jornalistas tinham desistido todos, e eu mantinha-me para ver se havia uma chance para entrar. De repente reparo que o meu crachá tinha só mais duas letras do que os dos atletas. E tinha um blusão azul-escuro como eles. Meto as máquinas dentro de um saco e quando vejo um grupo de atletas a aproximar-se, ponho-me no meio. E passei. Chegamos a uns edifícios que ficavam mais à frente e vem logo um grande grupo de polícias correr connosco. Mesmo em frente ficava a delegação portuguesa, num 16.º andar. Os elevadores estavam avariados. Não sei se foram os árabes, mas estavam avariados. Então percorro 16 andares a pé, pelas escadas. Chego lá acima sem fôlego. Toco a campainha e eles: ‘Como é que entraste?’. ‘Eu vou para a varanda. Apaguem as luzes’. Fui para a varanda e fiz isto, só com luz ambiente. O treinador da luta greco-romana vinha nessa noite para Lisboa e pedi-lhe para trazer o rolo.

Quando percebeu o que tinha ali?

Fomos para o centro de imprensa e pusemo-nos a beber uns copos. E vi que tenho isto. A Associated Press ofereceu-me 250 contos. Era uma fortuna, dava para comprar um Volkswagen. Mas já tinha mandado o rolo. A única coisa que aconteceu foi o Século pôr esta fotografia que não passou de Portugal. Fui estúpido, fui completamente estúpido.

Outro documento importante é o conjunto de fotografias que fez do 25 de Abril. Recorda-se desse dia?

Soube do golpe através de amigos, que me ligaram a dizer: ‘Agora é que é. Anda para o Terreiro do Paço. Traz os rolos todos’. E eu fui. Mas chego lá e há um soldado que me diz ‘Não pode passar’. E eu com uma grande lata: ‘Faz favor leve-me ao comandante que eu sou amigo dele’. Eu não era amigo do comandante, nem sequer sabia quem ele era. Então o soldado, ingenuamente, diz a um colega: ‘Leva este senhor ao comandante’. Chego lá e apresento-me. E o gajo: ‘Salgueiro Maia’. Acredite ou não, sob a minha palavra de honra, o gajo conhecia-me, por causa das capas que eu fazia para O Século Ilustrado. ‘Pode vir comigo’.

Também viajou por todo o mundo. Onde sentiu mais dificuldades?

Fotografei em 70 países, até em ditaduras: Iraque, Cuba, União Soviética, China. Só tive problemas num sítio: Israel. Quando estava a fazer o livro Fé – Olhares Sobre o Sagrado, quis ir a Jerusalém, porque há provas de que Jesus Cristo existiu e está sepultado lá. Fui numa excursão. Não se vê nada. Acaba a excursão e fico lá dez dias sozinho, a fotografar para mim. A Igreja do Santo Sepulcro, etc. Um dia vejo um jovem palestiniano de calções e t-shirt ser parado e despido na rua. Para humilhar. E fotografei. Imediatamente sou preso. O que vale é que levava daqui uma carta de apresentação da embaixada a dizer quem eu era e para não me tratarem mal. Se não tinha lá ficado. É o único país do mundo onde não gostaria de voltar.

Também esteve no Iraque, antes da guerra. Com que impressão ficou do país?

Tivemos de ir pela Jordânia. Na Baixa de Bagdade havia as melhores lojas do mundo, as melhores companhias de aviação, zonas de lazer espectaculares. Mas não funcionava nada. Fui para um hotel de cinco estrelas onde praticamente não havia comida. Era terrível. Fiquei revoltadíssimo, como é que um bloqueio pode destruir as vidas de milhões de pessoas. Visitei hospitais sem condições nenhumas. Ninguém tem dúvida que Saddam era um ditador, mas parece que só se tornou ditador quando nacionalizou os poços de petróleo. Antes era o nosso amigo Saddam.

Por falar em ditadores, há fotografias suas com Fidel Castro. Como o conheceu?

Não sou comunista, mas a minha grande ambição era retratá-lo. Conhecia o embaixador aqui, o Calviac, que era uma pessoa muito simpática, e disse-lhe que gostava muito de ir a Cuba fotografar o Fidel. Quando ele passou por Portugal, só umas horas, apareci na embaixada e deixaram-me entrar. Manifestei o meu interesse e o Fidel, muito simpático, diz-me assim: ‘Até me tiras fotografias para o bilhete de identidade!’. Fui tão parvo que acreditei. Lá vou eu para Cuba muito entusiasmado, levei uma cabeça de flash e uma sombrinha… encantado da vida. Os fotógrafos de lá, malta porreira, dizem-me: ‘O que vens cá fazer?’. ‘Venho retratar o Comandante’. Começaram-se a rir.

E retratou?

Fui sempre convidado para todas as coisas e fiz fotografias giras, até uma em que estou nas costas dele (normalmente a segurança não deixa fotografar estes tipos de costas) – mas nada mais.

Não insistiu com ele?

Ele até me cumprimentava. Para dar um exemplo: eu tinha comprado um chapéu de palha e um dia ele pergunta: ‘O que é feito do chapéu? Estás diferente, nem te conhecia’. [Tira uma fotografia da carteira] Aqui estou-me a lamentar: ‘Comandante, vou-me embora depois de amanhã’. ‘Tens de voltar cá’. Se voltasse também não conseguia.

Anda sempre com esta fotografia na carteira?

Sim.

Porquê?

Quando falo nisto, a malta diz que eu sou mentiroso. Percebo que tenham dúvidas, e eu não quero dúvidas. Não há necessidade.

Também anda sempre com a sua máquina fotográfica ao ombro. Já perdeu boas fotografias por não a ter consigo?

Não. Ando sempre, sempre, sempre com a máquina. Muitas das fotografias não as teria feito se não andasse com ela. Se me aconteceu perder fotografias foi por estar a falar. Hoje, se estou num acontecimento, não falo com ninguém. Tenho de estar 100 % concentrado. Às vezes colegas meus até ficam zangados.

Para nunca perder o momento?

O fotojornalismo é isso. Sem menosprezo, a maioria dos fotógrafos conceptuais faz-me lembrar aqueles primeiros fotógrafos: eram pintores frustrados, que se dedicaram à fotografia e fizeram fotografias lindíssimas. Tinham uma noção de composição que os outros não tinham. Mas não brinquem comigo: para mim, a fotografia é uma arte mecânica, capta o instante, uma expressão, um sentimento, um acontecimento que já não se repete.

Mas o instante por vezes tem de ser preparado. Como quando fez a fotografia de Nureyev.

Vou-lhe contar. Eu colaborava com a Companhia Nacional de Bailado. Sabia que a Margot Fonteyn e ele iam lá ensaiar. Mas naquele dia disseram-me: ‘Hoje não podes passar, que eles não querem’. Eu respeitei. Então topo um enquadramento lindíssimo. Quando vem a Margot Fonteyn eu digo-lhe ‘Só um momento’ e ela foge. Não disparei. Quando vem o Nureyev eu peço-lhe: ‘Nureyev, um momento’. Ele faz aquela pose. A fotografia, quanto a mim, está excelente, mas a seguinte já não presta.

Qual era o seu segredo para conseguir estas fotografias?

Quando vinha cá alguém como o Nureyev ou o Rubinstein, o director d’O Século Ilustrado pedia-me fotografias deles, mas dava-me liberdade. Eu seguia-os – entre aspas-, falava com o staff, e passado pouco tempo era admitido. Não forçava nada. Depois já fazia fotografias que os outros não faziam. Tenho fotografias do Rubinstein boas, fiz imensas do Nureyev, quando ele já me aceitava. Fazer de paparazzo era incapaz – esses gajos deviam ser todos presos. Nem são fotógrafos, são tipos desonestos.

Depois do 25 de Abril tornou-se um fotógrafo institucional. Gostou da experiência?

Quando me convidaram para ir para a Presidência da República tinha lá um grupo de amigos. Estava desempregado e aceitei. E o Eanes agradeceu-me por ter aceite! Criou-se uma amizade tal que estava sempre a querer saber o que eu andava a fazer. Em Washington chamou-me e apresentou-me ao Reagan: ‘Sr. Presidente, Gageiro. É o nosso fotógrafo e é meu amigo’. Dizem que tem cara de pau, mas é um homem puríssimo.

Celebram-se em breve os 40 anos do 25 de Abril. Está desiludido com o estado actual do país?

Tivemos 40 anos de ditadura – Salazar e Caetano. 40 anos depois temos outra ditadura. É o ‘quero, posso e mando’. Muitos políticos de hoje são frangos de aviário que não têm conhecimento da vida real. Deviam saber que há pessoas que deram toda uma vida de trabalho, que descontaram e que agora não têm que comer. Veja os pobres reformados, como eu, que ganho uma reforma de 400 euros. Sobrevivo porque edito livros e vendo fotografias.

O que se pode fazer para mudar isso?

Aconselhava as pessoas a levarem ovos podres para atirarem. E eu gostava de lá estar. Já imaginou o que era uma fotografia publicadas na imprensa internacional de um gajo com um ovo na cara? Tinha uma repercussão fantástica.

O seu filho também é fotógrafo.

Está desempregado.

Foi você que lhe ensinou?

Não lhe ensinei nada, ele é que foi aprendendo. Eu acho que ele devia ser redactor, porque escreve muito bem, mas ele preferiu ser fotógrafo. Agora está a fazer o meu site – eduardogageiro.com. Vou mostrar as fotografias e quem quiser que compre. Qualquer dia bato a bota, ao menos fica cá isso para o meu filho vender.

Há uns anos teve um problema de saúde.

Tive um linfoma, tinha os pulmões cheios de gânglios. Pensava que ia morrer, então comecei a fazer um livro de despedida, o Silêncios. Fiz a sépia ainda à moda antiga. Um dia apareço no IPO com as mãos todas sujas e a médica: ‘Ó Eduardo, o que é isso?’. ‘Estive a virar fotografias’. ‘E não usou luvas?’. Não gosto de trabalhar com luvas’. ‘Você é doido. Isso vai para dentro de si’.

Conseguiu superar a doença?

Deram-me um tratamento de choque, umas cápsulas. Ia a andar e caía. Não me aguentava nas canetas, nem podia guiar. Ao fim de cinco meses fui fazer outra TAC. Aquilo demora sempre uns dias a saber o resultado, mas no dia seguinte a minha filha telefona-me eufórica: ‘Parabéns! Safaste-te’. A minha filha é directora de um laboratório farmacêutico jordano. ‘Então conta-me lá essa história’. ‘Ligou-me uma amiga do IPO a dizer que estavas tramado. Iam dar-te um tratamento violentíssimo, se o aguentasses talvez te safasses. E safaste-te’. O livro acabava com morte, morte, morte. Tudo negativo. Nessa altura alterei o fim.

O preto e branco é a sua imagem de marca. Não gosta da cor?

O preto e branco é mais directo, mais dramático. Também gosto porque eu é que revelo os rolos e amplio as fotografias. Estou ali todo – desde o disparo até ao fim. Dá-me um prazer que não queira saber.

Não fotografa em digital?

Só coisas familiares. A fotografia de que eu gosto é analógica.

jose.c.saraiva@sol.pt