Jorge Jardim Gonçalves – o poder do silêncio

Nos últimos cinco anos estas crónicas coabitaram em mim com a escrita do livro Jorge Jardim Gonçalves – O Poder do Silêncio, que a Dom Quixote colocará à venda na próxima segunda-feira e que será lançado no dia 4. É uma sensação estranha, de algum vazio e enorme expectativa.

Um livro tudo menos linear. Na escrita, pois arrisquei compor uma partitura em dois andamentos. Nas implicações mediáticas, pois decerto O Poder do Silêncio será colocado no centro da polémica judicial do chamado Processo BCP. Na falta de tradição dos livros de ‘memórias interpretadas’ em Portugal, regra geral as memórias são escritas pelo próprio ou por escritores fantasmas, escritores que se anulam a si próprios. E no risco de contar episódios desconhecidos que oferecerão luz a vários assuntos pessoais ou com importância para a clarificação de uma parte da história do país – nomeadamente na relação entre o poder político e económico.

Partilho algumas passagens. Primeiro, a partitura em dois andamentos. Todo o livro tem dois capítulos ‘um’, dois capítulos ‘dois’ e por aí fora. Por um lado, a história de Jorge, entre quatro paredes, íntima, o Opus Dei e a relação com Deus, a guerra colonial, a infância no Funchal, os encontros com Salazar, o exílio em Espanha, os colégios que fundou, a história de amor com Assunção. Por outro, a história de Jardim Gonçalves, o poder do dinheiro, a fundação e o apogeu do BCP, a queda, os julgamentos, a influência dos que o fizeram cair, a relação com Champalimaud, Cunhal, Soares, Guterres, Sá Carneiro.

Dois exemplos:
«… O primeiro beijo não aconteceu no dia em que lhe disse que seria sua. Talvez o primeiro de todos tenha acontecido no fim da Rua da Bandeirinha, decerto que o foi. Por ali ficavam à conversa, para ali se dirigia o cadete Jorge quando, aos fins-de-semana, chegava de Tancos…», página 153 (capítulo V, ‘Um Anel de Noivado’.

ou

«…Escolheu Paulo Teixeira Pinto no início de 2005 e provocou a fúria silenciosa em alguns dos que lhe estavam próximos. Durante longos anos tudo fizeram para que notasse que eram mais inteligentes, rigorosos e produtivos. Frequentaram-lhe a casa, partilharam viagens e sucessos, ganharam e deram dinheiro a ganhar, esforçaram-se para provar ao líder que eram excelentes chefes de família e inatacáveis no plano moral. Compreensível e humano…», página 60 (capítulo 1, ‘O Escolhido’).

As implicações mediáticas são esperadas. Infelizmente, O Poder do Silêncio sai em plena polémica dos vários processos que levaram Jorge Jardim Gonçalves a tribunal. Tentei que não acontecesse, travei a edição o mais que consegui e o próprio fundador do BCP não desejou transformar O Poder do Silêncio numa obra de defesa, mas sim numa espécie de legado para a história. Creio que foi essa a sua intenção, como a minha foi a de contar a história de um homem que, chegado do Funchal, filho de uma professora primária e de um comerciante, haveria de baralhar o poder das grandes famílias e revolucionar a banca em Portugal. E que depois haveria de cair em desgraça mediática num dos processos mais secretos e estranhos da história do poder. Um processo em que muito pouco tentou oferecer ao país a sua versão, a sua mágoa, o que reconhece ter feito mal.

«… Nem sempre ama a vontade de Deus, embora aceite e compreenda que é o seu caminho. Sabe que não conseguirá voltar a conversar com Vítor Constâncio, Carlos Tavares ou Manuel Fino, cada um pelas suas razões, quanto aos outros, mesmo em relação a Berardo, que não considera, ou a Teixeira Duarte, estende a mão ou limita-se a um aceno…», página 609, capítulo 23 ‘Nem Sempre Ama a Vontade de Deus’). 
Um livro de memórias interpretadas.

«As críticas aceitam-se de quem possui o poder, da mesma forma que um homem é poderoso quando tem lugares para distribuir, uma regra de três simples, implacável de tão humana. Ao sair do BCP, ao ser confrontado com processos que colocaram em causa a sua honorabilidade, deixou de poder escolher pessoas e a sua opinião frontal, antes vista como uma mais-valia, passou a ser um incómodo. Não ‘falo’ apenas das conversas com ministros e outros influentes, ‘falo’ do momento em que saíra do banco que fundara, diz-se que nas semanas a seguir vários foram os altos quadros que anunciaram divórcios…», página 633 (capítulo 25 ‘Uma Pessoa em Trânsito’).

Um livro com muitos episódios desconhecidos. Que, como avisei na nota de autor, «não é sobre o Processo BCP. Sobre o Opus Dei. Sobre a guerra colonial. Sobre Salazar e Cunhal. Sobre o poder angolano e José Eduardo dos Santos. Sobre a infância, o exílio em Espanha, os colégios de Fomento, os que o traíram, amaram, pediram dinheiro. Sobre os irmãos e os filhos, heranças, conflitos familiares. Sobre o conflito com António Champalimaud, Belmiro de Azevedo, Pedro Maria Teixeira Duarte, Vítor Constâncio, António Mexia, José Sócrates ou Ricardo Salgado. Sobre a amizade com Eanes ou Soares, a engenharia de portos, a morte de alguns dos que mais amou, a sua própria morte. Não é sobre a via-sacra em que se tornou o seu caminho. Sobre Assunção, a mulher que viu pela primeira vez numa estação de comboios, e que é parte de si. Esta viagem não é sobre cada uma destas coisas. É sobre todas estas coisas. É a forma como o vejo. Simplesmente um homem em trânsito numa viagem que, agora, também é a nossa».