Ouvi vezes sem conta ‘Circo de Feras’ ou ‘Remar Remar’. Os Xutos e Pontapés eram inquilinos dos meus calabouços, um lugar onde libertava gritos mudos contra um mundo cinzento e sem esperança. A voz da revolução parecia vir das fábricas, das minas, dos subúrbios. Hoje, já libertos de mim, continuam a cantar que “a vida…
Na claustrofobia de uma prisão, ou de uma vida, a maior parte do que se sente não pode ser descrito em palavras – quando se está preso, em qualquer das suas formas, o código de sofrimento não tem vogais ou consoantes. Não temos uma chave a que possamos dar duas voltas quando algo de nós…
De vez em quando desaparece e esqueço-me que existe. Como se nunca tivesse ali estado, à porta de uma pastelaria, sentada, suplicante, ansiosa de moedas. Lembrei-me dela por ter voltado a vê-la no lugar de sempre e se o escrevo é porque me olhou curiosa, expressão humana que me fez perguntar onde esteve tantos dias,…
Quando calha a ter férias nem sei muito bem o que fazer com elas. Fico atarantado, precisava do dobro do tempo para as saber reconhecer e conseguir descansar. Não sei se tem a ver com a obsessão pelo trabalho ou com a quebra das rotinas de solidão, é provável que seja a soma das duas…
Boas notícias para os fãs de ficção científica.
À porta de um cinema sem pipocas, nas salas que prefiro, encontrei a professora que mais me marcou. Estava com uma amiga, eu com os meus filhos. Um e o outro tinham ido à casa de banho, o mais velho foi o primeiro a regressar. A minha professora, Helena Lebre, que nas aulas de Filosofia…
Em mim o mais ensurdecedor entre todos os gritos é o de Al Pacino no final da saga de O Padrinho; com a filha morta nos braços, a meio de umas escadarias à saída da ópera, o que lhe saiu da boca nunca mais me abandonou. Um grito roubado das entranhas, silencioso, esmagador. Um grito…
Um dia falei longamente com Carlos do Carmo sobre a utopia. Já lá vão uns anos, mais de dez. Encontrámo-nos entre as nossas duas portas, perto da lisboeta Avenida Estados Unidos da América. O meu pai foi muitos anos seu amigo, estive algumas vezes em sua casa, onde a Judite, mulher de uma vida, me…
O poder ter hoje um segredo, guardá-lo, é quase uma impossibilidade. Não penso nos casos amorosos às escondidas de casamentos mais ou menos felizes; não passam de manobras de diversão para manter o fogo vivo, fugir de uma vida que não suportam ou por pura animalidade dos sentidos. Saber guardar um segredo é outra coisa.…
Amei pessoas e não enlouqueci quando as perdi. Podia ter acontecido. Mas no pico do sofrimento tive saudades de quem não conheci, de quem não amei, de quem perderia se tivesse abdicado da razão. O que me liga à vida é o vício do jogo, a ansiedade de baralhar de novo, a esperança de que…
Ninguém trata os pais pelo nome próprio sem um forte motivo ideológico. Os que conheci eram de uma certa esquerda aristocrata, obviamente de muito boas famílias. Os filhos que substituem Pai e Mãe por José, Filipe, Maria ou Elsa foram estimulados a fazê-lo de crianças e cresceram na ideia de que o importante é a…
Sei do dia em que nasci, ofereceram-me as primeiras páginas dos jornais desse Setembro de Estado Novo, estava quente, abafado. Sei a cor do meu primeiro cabelo. Sei da primeira namorada, do primeiro beijo, do primeiro amor e desamor, sei dos livros que li numa arrecadação, sei do nascimento dos meus filhos, da morte dos…
Há uma nova categoria de seres humanos. Não são melhores nem piores, existem em função dos desejos de quem paga as revistas, de quem vê os programas de televisão ou de quem escolhe nas redes sociais. São os novos proletários, escravos ignorantes da sua condição, homens e mulheres famosos apenas por serem famosos, não por…
Voltei a uma redacção. Nestes anos de ausência, quando me perguntavam o que seria se tornasse a um jornal, respondia que, muito provavelmente, os mais jovens me veriam da maneira como eu via os mais antigos. O tempo passou tão depressa e vários dos meus veteranos já partiram para outras crónicas. Continuo a pensar o…
Para espanto geral duas alemãs de meia-idade levaram à boca a água quente, com um bocadinho de limão, que o empregado colocara na mesa para que pudessem lavar as mãos. Os que estavam e se aperceberam esforçaram-se para não se desmanchar e, ao contrário do que se poderia pensar, o empregado de serviço à esplanada,…
A decisão do reitor da Universidade de Lisboa, António Cruz Serra, de denunciar o contrato com a Companhia Artistas Unidos, de Jorge Silva Melo, é mais um sinal de decadência de um tempo. Uma consequência de uma crise política e dos políticos; das instituições e da relação entre elas e os cidadãos; da economia com…
Em todos os regimes, incluindo nas múltiplas formas de democracia, a contra-informação é um instrumento utilizado. Se não fosse eficaz seria menos usada, mas a tentação é grande e poucos têm pruridos morais na sua prática. Nada existe de tão volátil como a opinião pública, o que torna a equação aparentemente simples: quem a controla…
Num dos papéis mais elegantes de George Clooney, no premiado filme Nas Nuvens, ele é o homem que as empresas liquidatárias ou em reestruturação escolhem para despedir ou fechar as portas com o mínimo de danos possível. Mascarado de Armani ou Zegna, gasta a vida em aviões, escritórios onde despede pessoas ou saneia contas e…
Na passada semana escrevi sobre a influência dos sucessivos governos em negócios privados. A propósito do BES e da nomeação de Vítor Bento, Mota Pinto e Moreira Rato, fiz um paralelismo com o papel socialista na mudança de poder no BCP e não esqueci episódios com Mário Soares e António Guterres ou a amizade de…