O eclipse do Mundial

Quer se queira, quer não, o Mundial de futebol acabou, inevitavelmente, por eclipsar as questões nacionais e internacionais – algumas delas bem dramáticas, como a terrível guerra sectária no Iraque e na Síria, ou a interminável crispação na Ucrânia – que deviam merecer a nossa atenção. E, no plano interno, não falta quem tire proveito…

O Governo insiste em fingir que a saída da troika nos devolveu a soberania, embora se tenha tornado claro que iremos continuar dependentes de um policiamento apertadíssimo sobre o pagamento da dívida pública nos próximos trinta anos! Um prazo asfixiante e insustentável, por mais que baixem os juros, sem uma renegociação das modalidades de pagamento. 

Com efeito, não bastam os sinais de recuperação da nossa credibilidade junto dos mercados para suster a espiral de uma dívida que tem continuado – e ameaça continuar – a crescer.

Já no campo da oposição, este eclipse tende a favorecer o prolongamento da crise no PS, apesar da urgência cada vez maior em resolver o problema da liderança. A estratégia dilatória de António José Seguro alimenta um vazio que prejudica gravemente o principal partido da oposição e a existência de uma alternativa de Governo em Portugal. Seguro deveria concluir que ele próprio já não tem nada a ganhar com esse expediente e, mesmo com todas as razões do mundo a seu favor, poderá vir a ser julgado como coveiro socialista.

Em contrapartida, quem capitaliza com o longo apagamento de cena do PS são a actual maioria e a oposição mais à esquerda, basicamente o PCP, com a sua estratégia de protesto mas sem programa alternativo de governo. Resumindo: o eclipse do Mundial proporciona a entrada em estado comatoso da política portuguesa, acentuando o impasse resultante das eleições europeias.

Obviamente, não é a paixão do futebol – da qual, aliás, partilho sem quaisquer complexos – que servirá de álibi aos desregramentos e desvarios internacionais e nacionais. 

Mas, por mais que se queira, não é possível separar a festa do futebol dos jogos políticos urdidos nos bastidores. E aí está, desde logo, a grande crise desencadeada no Brasil devido ao incrível esbanjamento de recursos numa competição mal planeada e organizada, com desprezo das tremendas carências sociais e económicas sentidas por sectores cada vez mais vastos da população. Que seja um Governo de esquerda quem apareça no centro das acusações e que a Presidente Dilma Rousseff veja a sua reeleição ameaçada por causa dos escandalosos desperdícios do Mundial, eis o que não deixa de constituir um significativo sinal dos tempos. 

O teatro dos estádios, com a empolgante efervescência popular e multi-étnica, tende a fazer esquecer o que se passa fora dele – e até no seu interior e arredores, desde o estado da relva de alguns recintos às obras inacabadas. Mas não deixa de espantar que alguns expoentes da nossa esquerda folclórica se permitam fazer tábua rasa destas evidências.

É o caso do dirigente do partido Livre, Rui Tavares, que, a propósito das conexões entre política e futebol no Brasil, exclama festivamente no Público: «Este Mundial começou esplendidamente, e os eleitores são mais espertos do que aqueles polvos alemães que adivinham resultados». 

Tavares terá ficado sossegado com o facto de o clima de insurreição social latente no Brasil não ter perturbado a paz esplêndida da festa inaugural (e, deduz-se, a hipótese de reeleição de Dilma). Imagine-se o que, pelo contrário, diria se a competição tivesse decorrido neste jardim à beira-mar… 

Ora, precisamente, Portugal e Espanha não resistiram às tais conexões, decerto abusivas mas de todo irresistíveis, entre futebol e política, pelo menos ao nível dos inconscientes nacionais dos países do Sul causticados pela soberba dos países do Norte. As humilhações sofridas pelas selecções ibéricas perante as suas congéneres alemã e holandesa fizeram evocar o confronto entre as cigarras preguiçosas e as formigas trabalhadoras da Europa. 

O desaire espanhol, nas vésperas da sucessão entre Juan Carlos e Felipe, assumiu proporções históricas inusitadas (que se confirmariam com o afastamento prematuro dos campeões europeus e mundiais). Mas a  desgraçada  exibição  de  Portugal perante a Alemanha teve um sabor duplamente amargo: comportámo-nos efectivamente como cigarras e demos de barato aos germânicos um suposto direito ao preconceito que alimentam contra nós. 

A verdade mais funda, porém, foi que cultivámos expectativas disparatadas – e levadas ao rubro pelas televisões e imprensa desportiva nacionais – sobre o nível efectivo da nossa Selecção e o vedetismo exacerbado de Cristiano Ronaldo, cuja actual baixa de forma se pretendeu fazer esquecer com a aposta num milagre redentor. Mais um pretexto, afinal, para continuarmos  reféns  do  nosso masoquismo  histórico.