Manter as distâncias

O fomento da distanciação social é muito comum no povo português. Os portugueses adoram sublinhar as diferenças sociais e culturais entre eles e são, por isso, bastante desagradáveis mal detectam uma janela de oportunidade. Esmagar o próximo através da afirmação de superioridade é uma daquelas coisas feias que nos ensinam a não fazer quando somos…

As questões culturais que justificam este tipo de comportamentos têm origens horrorosas e objectivos ainda mais horrorosos, os quais já deviam ter-se alterado pelo menos um bocadinho através da educação de um maior número de pessoas de mais gerações, mas o certo é que a coisa tem vindo a piorar e são afinal os recém-educados os que mais fazem questão de exercer esse direito de utilizar os títulos para pôr os pontos nos is.

No Artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, clarifica-se o princípio da igualdade entre os cidadãos, e embora ache muito piroso e altamente arcaizante esta coisa de se fazer questão de rectificar quem se esquece de um ‘dê-érre’ antes do nome, o certo é que estes comportamentos são muito praticados com o intuito de alimentar a distanciação entre iguais. É possível assistir à prática desta modalidade no fornecimento de serviços, por exemplo.

Quantas vezes não fiquei já arrepiada ao ter de ouvir perguntas como: ‘Mas você sabe com quem é que está a falar?’ ou ‘sabe quem é que eu sou?’ e ‘trate-me por doutor’, por exemplo. Além de me fazer muita confusão, faz-me sentir num país velhíssimo, povoado por jovens velhos, adultos velhos e velhos velhos, onde as oportunidades não surgem e o trabalho não dignifica. 

O respeito que se tem – ou não – por pessoas-entidades deveria ser gerado e fomentado pela humanização dessas pessoas e não pelo exercício de uma prepotência titular. Porque na verdade, e se pensarmos um bocado, não é a certificação de conhecimentos o elemento distanciador fundamental numa sociedade evoluída. Porque a certificação académica de uma capacidade está ao alcance, e é um direito de todos. Daí que tenham nascido desportos como o alpinismo social e se aponte o dedo a quem quer mais e para tal escolheu o caminho da educação. Ainda assim, não se acredita numa meritocracia. Acredita-se na ânsia separatista que parte de uma ideia de ‘educação’ que se tem vindo a fomentar com o intuito de separar o trigo do joio. Social. O fosso aumenta a olhos vistos e sem necessidade, porque o elemento diferenciador entre os seres humanos na hipermodernidade é o carácter. A nobreza de espírito. Basta ler.

Neste momento de grande crise em que vivemos, é comum sentirmo-nos mais frágeis e por isso mais facilmente inferiorizáveis por parte de quem tem algum poder, seja prático ou teórico. É normal. 

Pergunto-me porque é que nunca se reconhecem as capacidades não canónicas dos indivíduos e se opta por procurar formas de adensar a diferenciação por meio de um título. O respeito cego que se tem por um profissional certificado leva-nos muitas vezes a fomentar vícios péssimos quer na forma como lidamos com os outros, quer na forma como lidamos connosco. E é preciso reflectir na hora de respeitar, confiar ou de acreditar. Essa confiança cega que se deposita no próximo é também uma forma de desresponsabilização muito conveniente em alguns casos; é uma forma primitiva de infantilização e subordinação do self ao poder do próximo. Nem sempre nos questionamos o suficiente. Nem sempre sabemos canalizar as nossas questões, execer os nossos poderes ou respeitar o próximo. Diria que envelhecemos socialmente.   

Não sou Dr.ª  nem nunca senti a necessidade de o ser porque nunca me senti inferiorizada pela falta de título. Vivo bem com essa ausência e com outras, mas noto com frequência que há muita gente que não. E que há muita gente que se sente inferiorizada por não ser Doutora ou Engenheira.
Todos nascemos iguais e somos cada vez mais iguais na diferença que é a nossa miséria diária; a identidade colectiva que deveríamos partilhar enquanto portugueses só é transversal quando se fala da Selecção. l
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