A esquerda pode morrer?

Comentando há cerca de um mês a situação política francesa, na sequência da vitória da Frente Nacional e da hecatombe socialista nas eleições europeias, o primeiro-ministro Manuel Valls lançou um sombrio prognóstico: «Sim, a esquerda pode morrer…». 

Conotado com a ala direita do PS e outrora adepto da renúncia do partido à designação «socialista» – que lhe parecia um anacronismo herdado do século XIX –, Valls representa a tendência social-liberal que se foi impondo na esquerda democrática europeia desde os tempos de Tony Blair e de Gerhard Schröder. 

O desastroso percurso político de François Hollande – que depressa se tornou o mais impopular de todos os presidentes da V República – levou-o a uma desesperada tentativa de viragem à direita e a escolher Valls, o ministro do seu primeiro Governo mais favorecido nas sondagens, para chefiar o segundo Executivo socialista. Uma estratégia de sobrevivência que poderá custar a Hollande um segundo mandato no Eliseu (é bem conhecida a ambição presidencial de Valls), mas para a qual não encontrou alternativas, tendo em conta a inconsistência e a tibieza tantas vezes demonstradas pelo actual Presidente. 

Recorde-se que, por altura da sua eleição, Hollande apareceu como uma esperança aos olhos de grande parte da esquerda europeia, em particular dos países do Sul, para enfrentar a todo-poderosa sra. Merkel e conseguir alterar os cânones sacrossantos da política de austeridade. Foi uma ilusão que rapidamente se dissipou, enquanto o desacreditado Hollande se apagava de cena e se submetia ao diktat germânico. 

Mas o caso francês será apenas o mais extremo – atendendo à importância histórica e económica do país – de uma crise que varre toda a esquerda europeia, com a recente excepção do PD italiano de Matteo Renzi (e, no campo mais radical, do grego Syriza, outro grande vencedor das últimas eleições). Das sociais-democracias nórdicas à alemã – coligada com Merkel no actual Governo de Berlim – pouco ou nada resta das glórias passadas. 

A fronteira entre esquerda e direita tem vindo a diluir-se cada vez mais, com a adopção praticamente generalizada da linha social-liberal e a consequente rendição à ortodoxia financeira vigente. Não é sequer um fenómeno estritamente europeu, se pensarmos por exemplo na enorme desilusão que constituíram a presidência Obama nos EUA ou a presidência Rousseff no Brasil. 

A sensação sufocante de falta de alternativas entra em choque, no entanto, com a própria realidade das coisas, quando persistem os desmandos provocados pelo império global do capitalismo financeiro. Aparentemente, a esquerda teria um campo largo de afirmação contra esses desmandos – ou, pelo menos, a favor do seu controlo e regulação – mas é o contrário disso a que assistimos. 

Na Europa, por exemplo, os países do Sul asfixiados pela austeridade e as respectivas forças de esquerda nunca conseguiram criar uma plataforma comum que desse corpo às suas razões e permitisse desenvolver uma ofensiva política com um mínimo de expressão. Para já, limitamo-nos a esperar que a irrequietude de Renzi – apesar de ele ser, em parte, um herdeiro de Blair e Schröder – introduza alguma agitação no pântano ou que, finalmente, na sequência de um terramoto de proporções colossais que acabará por atingi-los, os patronos da ortodoxia dominante acordem para a implosão de um mundo supostamente intocável. 

O exemplo da esquerda portuguesa é dos mais exasperantes. Temos um PS dividido em torno da sua liderança, sem que, para além das características pessoais de cada um dos candidatos – Seguro e Costa –, se perceba o que os separa na estratégia ou nos programas. E enquanto o folclore das campanhas de apoio (veja-se o clientelismo despudorado da gente das artes e dos espectáculos, com Luís Montez promovendo Costa à ‘Champions League’) corrói a credibilidade do PS como alternativa ao actual Governo, a restante esquerda vai-se alegremente desintegrando em mil correntes, com a óbvia e arqueológica excepção do PCP. 

O PS continua a ser eterno suspeito de ‘traição histórica’ com a direita, impedindo quaisquer relações de confiança. É o álibi que resta às várias esquerdas de protesto, em acelerado processo de decomposição (caso do BE e congéneres) ou petrificação (como o PCP). 

As abstracções ideológicas levam cada vez mais a proclamações de um vazio patético, como se vê nos últimos cartazes comunistas: «Derrotar o Governo e a política de direita – A força do povo por um Portugal com futuro – PCP, política patriótica e de esquerda». Se desmontarmos o conteúdo destas frases mil vezes repetidas, que resta? Rigorosamente nada. Ou apenas a fé acéfala e desesperada de crentes à espera do milagre. A esquerda – esta esquerda – pode morrer ou já está morta?