Um milagre segundo Le Monde

O editorial de quarta-feira de Le Monde, um dos jornais mais influentes e respeitados da imprensa internacional, é dedicado ao caso Espírito Santo, na sequência da decisão do Banco de Portugal (BdP) em separar as águas do BES entre um banco «bom», o Novo Banco, e um banco «mau», reunindo os activos tóxicos do Grupo…

Enquanto em Portugal o tempo e o modo dessa separação suscitam mil polémicas, Le Monde apresenta uma visão marcadamente optimista, senão eufórica: «É uma boa notícia para a zona euro. Depois de um mês de turbulências nos mercados e receios de contágio ao resto da economia, o Governo português decidiu, no domingo, 3 de Agosto, intervir para ajudar o Banco em dificuldade Banco Espírito Santo.

O plano de salvamento foi concluído em quarenta e oito horas. Os accionistas e credores não prioritários deverão meter a mão na algibeira, enquanto os depositantes e os contribuintes serão poupados. Para fazê-lo, Lisboa seguiu escrupulosamente as regras que a zona euro tenta concretizar depois da crise. A união bancária realizou com sucesso o seu primeiro teste em tamanho natural e é preciso felicitarmo-nos se medirmos o caminho percorrido desde 2010».

Para Le Monde, o desfecho do caso Espírito Santo constitui, por isso, uma espécie de pré-estreia auspiciosa da tão desejada união bancária europeia, cimento fundamental do futuro económico e político da própria Europa. Seria uma excelente notícia, de facto, com a particularidade de fazer de Portugal o protagonista de um ensaio histórico. 

Mesmo admitindo que a solução encontrada para o imbróglio Espírito Santo foi a melhor possível dentro do leque das opções ainda disponíveis, há no editorial cor-de-rosa de Le Monde um estranho desconhecimento (tratando-se de um jornal que prima pelo rigor informativo) do contexto do caso BES e, sobretudo, da inexplicavelmente tardia intervenção do BdP e do Governo português (este, aliás, remetido a uma postura expectante e quase muda, como se receasse envolver-se numa questão politicamente escaldante). 

Ou seja, apesar das indicações, reconhecidas pelo próprio Carlos Costa, de que já em Setembro de 2013 se detectavam sinais preocupantes da crise no universo Espírito Santo, o BdP só acabou por intervir em desespero de causa, quase um ano depois, permitindo que a anterior administração do Banco, embora formalmente já afastada de funções, continuasse a praticar actos que viriam a agravar o descalabro financeiro do BES. Além disso, já em Maio deste ano fora autorizado um aumento de capital de mais de mil milhões de euros que agora se converteram em lixo irrecuperável para os desprevenidos accionistas. 

Não só as auditorias, incompreensivelmente, não funcionaram, deixando um rasto pesado de suspeitas por esclarecer, como a regulação e a supervisão bancária mantiveram o processo praticamente em roda livre até ao momento em que já não era possível ocultar a queda final no abismo e o esvaziamento dos cofres do BES. Pelo contrário, ao longo de semanas, o BdP, o Governo e até o Presidente da República foram lançando sinais apaziguadores, segundo os quais o Banco estava imune ao contágio do Grupo em desagregação – o que pecava, como se viu, por manifesta inverosimilhança – e dispunha de uma almofada financeira mais do que confortável para se precaver de ameaças de derrapagem.  

Como se tem ouvido até à exaustão, a raposa permaneceu livremente dentro do galinheiro, sem que ninguém se atrevesse a pôr trancas à porta enquanto era ainda tempo. Carlos Costa fez figura de mordomo reverente perante um patrão caído em desgraça mas que, afinal, continuava a deter as chaves do galinheiro. 

Que tudo isto se possa converter, miraculosamente, segundo Le Monde, numa «boa notícia para a zona euro» e num ensaio feliz de antecipação da união bancária, representa um exercício esfuziante de humor negro. O tal banco «em dificuldade» (prodigioso eufemismo do jornal francês) tornou-se uma oportuna cobaia para o primeiro teste fundador da unidade financeira da Europa! Só que a euforia de Le Monde estava completamente deslocada e nem a distância entre Lisboa e Paris pode explicar clamorosos erros de informação como este: «(…) quando um estabelecimento vai muito mal, é preciso agir sem demora para que o pânico não contagie todo o sistema. Para que isso seja possível, um mecanismo pronto a ser utilizado foi posto em marcha. A crise do Banco Espírito Santo mostrou que funciona». 

Se, apesar de tudo o que se sabe – e Le Monde ostensivamente ignora – o desfecho do caso Espírito Santo funcionar como o milagre que se esperava para a zona euro, então um futuro de prodígios salvadores, embora ao arrepio da lógica e dos factos, estende-se à nossa frente…