Conversa de pai para filhos

No início do ano lectivo há sempre um almoço de papel na mão. De um lado da mesa, eu e a mãe, em frente a nós os dois rapazes, adolescentes. Esboçamos horários de estudo, desporto e os tempos livres em que estão por sua conta e risco – limitado, como convém.

Desta vez foi na velha Portugália, em Lisboa. Na primeira, entre a Estefânia e a Praça do Chile. O mais velho começou a beber café, consenti. É melhor ir acordado para as aulas das oito, não as perder, está a correr bem. Organizado o compromisso entre as partes, e assinado por eles, chegámos à fase das perguntas. O mais pequeno, 13 anos, quis saber por que sou simpático para quem não gosto; ofereceu um exemplo, um velho 'amigo' com quem de vez em quando estou, mesmo não suportando o que nele passou a ser essência.

Pensei no assunto, nada fácil…

Definitivamente há quem passe por cada uma das vidas e tenha importância num breve instante. Nessa presença – de dias, meses ou até anos – desempenham um papel na nossa peça. Depois desvanecem-se e, não raras vezes, questionamos o que raio nos aconteceu para que tivessem sido tão próximos. A uns, deixamos simplesmente ir, e eles a nós. A outros, esforçamo-nos para que o último encontro não seja o derradeiro. Censuramos o detalhe que nada temos para dizer ou ouvir daquele amigo ou amiga com quem já caminhámos a par. E voltamos a telefonar. Não por bondade ou masoquismo, fazemo-lo por nós. São uma espécie de velas de presença do que fomos, qualquer coisa do género.

Não lhe disse isto, pensei em responder na crónica, desabafei um «lê o SOL», maneira de 'sacudir a água' e ganhar tempo. O mais velho riu-se, desdenhou com um sorriso tímido, típico dos primeiros filhos que conheço. Ninguém me convence que são assim, ao contrário dos outros (mais extrovertidos) por causa da 'overdose' de que são vítimas. É que todos os filhos são únicos, mas o primeiro sofre pela ansiedade dos pais. Overdose de fotografias; stress pelas cólicas reais e imaginárias; pesadelos nocturnos com caminhas, chupetas, tomadas eléctricas e quedas; roupinhas, pozinhos, creminhos e um Deus me livre de medo e esperança. Também conheço os que levam os bebés nas suas múltiplas viagens e passeios. De pequenino se aprende a tornar o mundo maior do que o umbigo, contam-me. O que lhes respondo? Que têm razão. Aviso-os porém de um pequeno detalhe democrático: é que por mais viajados que sejam, com passaportes continentais e milhas de voo, os seus bebés chorarão tanto como os nossos. Só ao segundo filho percebem realmente o que lhes digo..

Segunda pergunta… o melancólico regresso à infância, se pensava nisso agora que o cabelo falta e a barriga sobra. Lá arrisquei um ou outro lugar-comum. E sentado aqui, ao computador, voltei ao tema, um dos meus preferidos.

Engraçado.

O que me acontece acredito suceder à maioria das pessoas, a si quase aposto. Nas noites mais longas, de insónias, voltamos a imagens que parecem pertencer a outras vidas. Coisas vividas por pessoas que, apesar de muito parecidas connosco, não são o que nos tornámos. Tornar à infância é um exercício entre o que julgamos que sentimos e o que queremos empolar de positivo ou esquecer de negativo. Vejo-me na fotografia de outros tempos; que laços me ligam àquele miúdo de sorriso triste? Sou um fantasma dele ou ele uma presença na minha? Ontem, apeteceu-me voltar a ser o pequeno Luís. Regressar atrás. Fechei então os olhos ao ouvir a buzina do tio Manel – não demorei a escutar os passos da avó Joaquina que, como sempre, se levantou do sofá e foi à rua dar um beijinho ao seu mais velho. Muitas vezes não sei se me levanto também, se acendo a luz e calço qualquer coisa para os reencontrar. Deixo-me sempre ficar, a verdade é essa. Ainda não, penso sempre.

Estranhos pensamentos.

Próprios de estar sozinho, mesmo com os outros. Na solidão, o silêncio ensurdece. Qualquer ruído parece sempre demasiado distante ou demasiado próximo – quando o ouvimos longe julgamos ser uma metáfora do que sentimos, quando o pressentimos perto pensamos serem fantasmas ou a nossa cabeça. Na solidão morre-se assim. Umas vezes acompanhados, noutras vezes, sozinhos. Sim. Podemos asfixiar de solidão com gente à volta e uma cama partilhada. E podemos viver tranquilos estando absolutamente sozinhos. A solidão é democrática e silenciosa. E é sempre nela que regressamos à infância.

Campo mágico esse. Para onde 'viajo' quando estou com eles. Quando lhes conto histórias que menosprezam fazendo-me sentir que pertenço a um outro filme, torno ao que fui e concluo que me fazem o que fiz aos meus. Um dia os meus netos farão o mesmo. É bom que se habituem à ideia. E que recusem a irritante ideia de que devem fazer o que está predeterminado, o que os outros esperam que façam, dizer as palavras certas, escutar reverentemente, usar os mesmos perfumes, roupas, ler os mesmos livros, canções, equações, votar nos mesmos partidos, frequentar os mesmos restaurantes, não pensar pela cabeça que apenas a eles pertence. Que recusem essa ideia. Se o fizerem está tudo bem. Isso disse-lhes no almoço, digo-lhes sempre que posso.