António-Pedro Vasconcelos: ‘Não queria um filme piegas’

António-Pedro Vasconcelos regressa com Os Gatos Não Têm Vertigens, retrato do país através de uma história de amor. Ao SOL adianta que este poderá ser o seu último filme.  

Este é um filme sobre exclusão e abandono, mas também sobre amar o próximo. Em 2014 só podia fazer um filme assim?

Ponho a coisa de outra maneira: só em 2014 é que podia fazer este filme. Não é possível fechar os olhos ao que se está a passar à nossa volta. Sou incapaz de ser indiferente e todos os meus filmes, mal ou bem, são um retrato do país. Este filme é muito marcado pelo período negro que estamos a viver. Depois do 25 de Abril não me lembro de nada assim. É um trauma que vai ficar durante muitos anos porque este é o primeiro Governo que conheço que não tem a mínima preocupação com as pessoas. Não podia fazer um filme que fosse indiferente a isso, mas também não queria fazer um panfleto.

Daí a mensagem de esperança com que termina?

Sim, é mais do que esperança. É amor no sentido em que São Paulo fala do amor. Não sou católico nem crente, mas a esperança tem que se basear em qualquer coisa. A Rosa (personagem principal) é capaz de amar, mas é uma mulher dura porque eu não queria fazer um filme piegas.

É a história de uma viúva que encontra um jovem problemático a viver no seu terraço. Como surgiu?

Quando começou a crise e fui confrontado com a possibilidade de fazer outro filme, o (argumentista) Tiago Santos abordou-me com uma ideia que me lembrou uma história que se tinha passado com uma amiga minha, que também encontrou um miúdo a viver na sua casa de férias, e achei que tinha aqui matéria. A minha fonte de inspiração era o Frank Capra e a mensagem de esperança e solidariedade que tinha nos filmes que fez no período da Grande Depressão americana, à escala mundial muito parecida com o que se passa cá. Por isso aprofundei a capacidade das personagens em não desistir e serem solidárias com o próximo. A Rosa confronta-se com um miúdo a viver no seu terraço e decide apostar incondicionalmente no seu lado bom.

Conhece muitas Rosas na vida real?

Foi muito fácil conceber esta Rosa porque é da minha geração. Tive amigos que se casaram na prisão, que foram torturados pela PIDE, que têm esta generosidade toda e fé em terceiros. Já o miúdo tinha muita dificuldade, mas como sou incapaz de falar de coisas que não sei, não descansei enquanto não conheci putos destes. Andei durante mais de um ano à procura até que descobri uma senhora extraordinária, no Porto, que lida com miúdos marginalizados.

Contar uma história sem conhecimento de causa é meio caminho para obter um mau filme?

Entre outras coisas… É preciso investir nas histórias, ter um bom argumento, e saber contá-las porque uma história através de imagens é uma coisa extremamente difícil. Detesto filmes em que cada plano tem a assinatura do autor, como se fossem quadros, mas está na moda filmes que precisam de manual de instruções. 'Não percebeu? Espere aí que o autor vai explicar-lhe'. Isso não é cinema.

E o cinema português é assim?

Criou-se esta ideia absurda de que um autor não pode ter público. Eu era autor até fazer O Lugar do Morto, depois passei a comercial. O termo 'cinema de autor' foi inventado pelo Truffaut, nos anos 50, para provar que o Hitchcock era um grande autor, sendo ele o realizador mais comercial de todos os tempos. O que lhe interessava era que os seus filmes chegassem ao público.

Os seus filmes têm sempre público, mas a crítica arrasa-os. Irrita-o?

Em Portugal a maior parte da crítica é muito ignorante. Já desafiei a crítica para fazer provas cegas, mas nunca aconteceu. Só há duas soluções: ou os filmes são projectados sem genérico ou com público, porque a sala faz parte da banda sonora. Um filme não está pronto enquanto não é exibido porque é o público que desperta o filme. O público é, por exemplo, o príncipe de A Bela Adormecida.

O que faz para si um bom filme?

De todas as artes o cinema é a mais difícil porque é uma arte hipnótica. Se o espectador perde o fio à meada ou se não percebe descola do filme. Um filme tem de ser feito ao milímetro e, só para este, fiz dez versões. Um bom script é aquele em que os actores e espectadores não têm que fazer perguntas. Sou fiel ao que Truffaut sempre disse: 'Não podemos desligar-nos do público'. O radicalismo estético, no fundo a linha Godard, foi fatal para a deriva do cinema europeu e, por arrasto, o português. Nesse aspecto sou um dissidente porque mantive-me fiel ao princípio de que as obras têm que comunicar com o público.

O reconhecimento que o cinema nacional tem conquistado nos últimos anos nos festivais de Cannes e Berlim não contraria o que diz?

Essa ideia de que somos conhecidos lá fora faz parte do nosso provincianismo. Somos muito conhecidos lá fora e não somos cá dentro? Isso é um insulto ao povo português, é chamar-lhe estúpido, dizer que não sabe apreciar o talento nacional. Também tive um prémio da crítica em San Sebastián, mas isso não faz a Primavera. O problema é que nesses festivais só vemos os portugueses. Se calhar há mais iranianos ou afegãos a terem prémios. No outro dia estive no Festival de Marraquexe e o cinema marroquino dá-nos dez a zero. Em anos normais, o cinema nacional tem menos de 1% de espectadores, quando a média europeia é de 20 a 23%. Isto é impossível. No ano passado fizeram-se 17 filmes, entre eles, Até Amanhã, Camaradas, Comboio Nocturno para Lisboa e 7 Pecados Rurais. Os outros 14 filmes ninguém ouviu falar deles.

Também houve 'A Gaiola Dourada'…

A Gaiola Dourada funcionou como filme português, mas é francês. Se fosse português, atrevo-me a dizer, nunca seria feito porque nunca teria subsídio. Nunca! E foi o filme que salvou a época.

Porque nunca teria subsídio?

Em Portugal há dois preconceitos terríveis: a comédia é um género menor e uma mulher bonita não pode ser boa actriz. A Soraia Chaves, por exemplo, é uma actriz espantosa, mas tem de fazer uma operação plástica para poder trabalhar em cinema cá. Mas se não fosse A Gaiola Dourada os cinemas tinham perdido 25% do público. Bato-me há mais de 30 anos, cada vez mais sozinho, contra este paradigma que vem desde o Marcelo Caetano de que é o Estado que chama a si a selecção dos projectos e decide quem é ou não subsidiado. Nisso, a nova Lei do Cinema, feita por Francisco José Viegas, é uma calamidade.

É por isso que já disse várias vezes que o seu último filme deverá ser este?

O cinema sempre foi uma indústria muito cara e sem dinheiro não é possível filmar. Tenho conseguido porque sou muito teimoso, mas neste momento não há condições para continuar. Alguém convenceu o Instituto do Cinema e Audiovisual a acabar com o concurso complementar que permitia que pessoas como eu pudessem filmar. Agora, nem eu, nem o Fonseca e Costa, nem o Cunha Telles temos hipóteses, ainda passamos pela vergonha de ir a concurso e ficarmos em 10.º lugar. É uma luta que já não é para mim, mas vou morrer a combater isto.

alexandra.ho@sol.pt