Travar o crescimento para salvar o planeta

“O crescimento económico tornou-se uma espécie de religião. Está nos discursos dos políticos, dos empresários e em todos os meios de comunicação social”. O economista e político equatoriano Alberto Acosta falava no início de Setembro para uma plateia de três mil pessoas. Outras sete mil seguiam-no pelo livestream na internet.

Activistas e académicos vindos de todo o mundo juntaram-se na Universidade de Leipzig, na Alemanha, para a 4.ª Conferência Internacional sobre Decrescimento. A premissa? Que não pode haver crescimento infinito num planeta com recursos finitos. A proposta? Uma diminuição da produção e do consumo nos países industrializados, que aumente o bem-estar humano e promova as condições ecológicas e a equidade no planeta.

“O mundo tem limites biofísicos que não podem ser ultrapassados. Se toda a gente consumisse como no mundo ocidental, precisaríamos de seis planetas”, declarou Acosta. “A corrida pelos últimos recursos vai matar o planeta. É hora de tomar responsabilidade, de deixar o petróleo, o ouro, o carvão no solo, e de mudar a forma como vivemos. Falamos de transformar o mundo, de pensar outra economia, para outra civilização”.

“Hoje em dia a análise é sempre a mesma: se há um problema é porque crescemos pouco. O decrescimento é como uma palavra-míssil para quebrar esta monocultura do crescimento, esta hegemonia, esta apatia”, explica Gualter Barbas Baptista, co-organizador do evento e coordenador do projecto Growl, que visa formar formadores em decrescimento. “É mais do que simplesmente inverter o crescimento económico: é descolonizar o imaginário, desconstruir este pensamento do crescimento, do desenvolvimento, do progresso, e pensar realmente de que é que precisamos para uma boa vida e para uma sociedade mais justa”.

Na última década, enquanto a austeridade se impunha na Europa, a ideia do decrescimento ganhou força nos meios académicos e notoriedade, através de economistas como Serge Latouche ou Niko Paech. Clamam a necessidade de abandonar o PIB como indicador económico de referência, e afirmam que expressões como 'capitalismo verde' ou 'desenvolvimento sustentável' são contradições de termos: enquanto ancorado no crescimento capitalista, na sociedade produtivista e consumista, nenhum desenvolvimento pode ser ecológico ou sustentável.

“Nos países do Sul embarcámos com entusiasmo no comboio do crescimento. Mas no caminho descobrimos que este pode ser empobrecedor e gerador de mal-desenvolvimento. Estamos a destruir recursos naturais, a destruir a identidade e as formas de vida das comunidades, a empobrecer a sociedade e a criar um sistema assimétrico”, nota Alberto Acosta, que foi presidente da Assembleia Constituinte do Equador em 2008. Surgiu aí a primeira Constituição no mundo a contemplar os direitos da natureza e a introduzir o conceito de 'buen vivir', uma alternativa clara ao conceito de desenvolvimento neoliberal (ver caixa). “Existe no mundo quantidade suficiente de alimentos para alimentar toda a gente, mas nesta sociedade do desperdício há toneladas de comida deitada fora e milhões de pessoas que se deitam todas as noites com fome. As 85 pessoas mais ricas do mundo possuem tanto quanto a metade de baixo da população mundial. Nos Estados Unidos, 75% do crescimento vai para os 10% mais ricos. É este o crescimento de que falamos”.

“No que toca a lidar com as alterações climáticas, falhámos catastroficamente”, considera a jornalista e activista canadiana Naomi Klein. “A resposta não passa por voltar a um capitalismo mais regulado. É tarde demais para isso. Temos de reduzir as emissões 10% por ano e isso pura e simplesmente não é compatível com crescimento económico”. E continua: “A austeridade, a privatização dos transportes e da energia, estão a sabotar as respostas necessárias à catástrofe climática. Os governos perderam a capacidade de dizer 'não' aos interesses privados. O que nos resta são os movimentos populares”, conclui a autora do best-seller No Logo, que denuncia certas práticas de algumas grandes marcas como a Nike e a Microsoft. Klein vê nesta conferência “o debate fulcral da nossa era”.

Uma nova utopia?

“Na primeira conferência do decrescimento em Paris em 2008 éramos 100, agora somos três mil. Temos uma taxa de crescimento de 300%”, brinca um dos organizadores. “Se continuamos assim, em 20 anos temos o mundo inteiro connosco”.

Pelas salas e corredores da Universidade de Leipzig, cruzam-se sapatos de professores universitários e pés descalços de jovens ambientalistas. A impressionante diversidade de pessoas espelha um dos desafios dos decrescentistas: se a necessidade de abandono do paradigma do crescimento económico e do sistema capitalista é consensual, a forma de o fazer suscita todo o tipo de debates. Através do Estado ou à margem deste? Recusando a tecnologia, ou desenvolvendo tecnologias emancipatórias, que respondam a necessidades reais em vez de criarem novas necessidades? Adoptando individualmente uma 'simplicidade voluntária'? Convencendo os sindicatos? Lutando contra os grandes projectos destrutivos da natureza?

“O decrescimento é um ponto de contacto de diferentes identidades e estratégias, um processo de questionamento e aprendizagem mútuo. Mas tem o potencial de criar uma identidade colectiva, em torno de valores e conceitos como o buen vivir, o ubuntu [filosofia da África subsariana ligada à ideia de comunhão e fraternidade], os comuns”, explica Gualter Barbas Baptista, que é doutorado em Ciências do Ambiente pela Universidade Nova de Lisboa e professor de Agricultura e Decrescimento na Universidade de Kassel, na Alemanha. Como ele, muitos investigadores pioneiros na área do decrescimento são também activistas pela justiça ecológica e social. E isso faz do decrescimento “um movimento único, que cria pontes entre diferentes correntes científicas e diferentes movimentos sociais, entre diferentes regiões do mundo, entre teoria e prática. O resultado está à vista”, nota o docente.

Das salas de aula, os passos tomam as ruas: a conferência académica termina numa manifestação pelas artérias comerciais de Leipzig, onde mais de mil pessoas gritam “Kapitalismus raus aus den Köpfen” (Tiremos o capitalismo da cabeça), “System change, not climate change” (Mudanca de sistema, não alterações climáticas) ou “Less is more” (menos é mais). O protesto culmina numa açcão junto à central termo-elétrica de Lippendorf, no Sul da cidade, uma das mais poluentes da Europa.

“Não podemos contentar-nos com hortas urbanas, regressar ao campo e criar alternativas à margem do sistema: temos de ser corajosos e fazer frente ao sistema, a governos injustos, à austeridade, ao capitalismo e ao capitalismo verde”, afirma a lisboeta Lanka Horstink, coordenadora da campanha portuguesa pelas Sementes Livres, que veio apresentar o seu estudo de doutoramento na área da democracia alimentar. Enquanto se anunciam novas barragens e novas explorações de recursos naturais em território português, Lanka é peremptória: “Temos de travar este caminho. Há um grupo de associações que nunca desistiu de lutar contra as barragens e de denunciar as aberrações que são estes projectos, num país pequeno e com uma natureza frágil. É preciso criar uma plataforma política, à margem dos partidos, pelo decrescimento, pela transformação da alimentação, da agricultura, da economia. Neste momento, neste sistema, a recessão, a estagnação e o desemprego são uma fatalidade. O decrescimento é uma intenção, uma estratégia consciente, que dá esperança. Portugal é um país pequeno, com grande biodiversidade e diversidade cultural, onde podemos recuperar o sentido comunitário, autogerir-nos, ter uma agricultura local e biodinâmica”.

“Hoje é muita clara esta reemergência dos comuns, esta passagem do 'direito a ter' ao 'direito a usar'“, considera Gualter Baptista. “As iniciativas de transição, as hortas comunitárias, o regresso da agricultura à cidade, são como cogumelos a despontar por toda a parte. Mas são muitas vezes iniciativas estritamente locais, com uma mentalidade do género 'eu quero é a minha horta bonita'. O decrescimento cria este quadro político e intelectual onde iniciativas locais encontram o global. Dá-lhes significado”, explica o professor da Universidade de Kassel. “Criou-se um movimento académico muito rico, ancorando conceitos antigos, buscando fontes teóricas e referenciais históricos. De Ivan Illich a Georgescu-Roegen ou Jacques Ellul, há uma série de pensadores que acabam por convergir em algo novo, um novo imaginário colectivo, uma nova utopia”.

Para estas três mil pessoas, é tempo de por este imaginário em prática. “Precisamos de aplicar aqui e agora vários buen vivir”, afirma Alberto Acosta. “Está nas nossas mãos que mundo queremos deixar aos nossos netos”.

Para Naomi Klein, “as alterações climáticas são como um despertador civilizacional, uma oportunidade histórica para construir o mundo com que muitos antes de nós sonharam: fechar o fosso entre ricos e pobres, expandir radicalmente os comuns, dispersar o poder das mãos de uns poucos pelas mãos de muitos. São uma mensagem poderosa, no idioma de fogos, cheias, secas e extinções, a dizer-nos que precisamos de um modelo económico inteiramente novo e uma nova forma de partilhar o planeta”.