Carminho: ‘O fado liberta-me’

A cantora reúne em Canto uma galeria de músicos de primeira linha e assume o desejo de ir além do fado. O disco foi lançado na segunda-feira do canto da Europa para o mundo.  

Como e quando surgiu a necessidade de fazer este disco?

 Não sei, é algo natural. Começa uma vontade muito grande de cantar novo repertório. Nunca paro de ler, de procurar. Tenho muitos poemas em gaveta e não sei o que fazer com eles. E passados três anos é natural haver novo disco. 

Mas o disco anterior, 'Alma', é de 2012.

Pois é, já parece ter mais tempo do que realmente passou. São muitos concertos a apresentar esse disco. Faz com que esse disco ganhe uma grande vida, mas às tantas o repertório precisa de ser renovado, é um processo natural.

Neste disco há um regresso ao Brasil. Como se deram os encontros com Jaques Morelenbaum e com Marisa Monte?

Esse processo vem muito ao encontro do nome do meu disco. Chama-se Canto sobretudo por duas razões: é canto de cantar, de haver um canto unificador; e um canto de lugar, onde me sinto cada vez mais em casa, com uma música com uma raiz muito forte no meu país, na minha história, não só o fado, mas toda a musicalidade portuguesa, que me inspirou desde pequena. O Jaques Morelenbaum é o melhor violoncelista do mundo, acompanhou o Tom Jobim, é de um talento e de um coração sem igual. Tive o privilégio de ele ter feito um arranjo para o 'Sabiá', do Chico Buarque, que interpretei com o António Zambujo nos prémios da música brasileira. Gostámos muito de trabalhar juntos e foi um momento de grande felicidade para mim. Agora houve um convite para interpretar este tema do Miguel Araújo, 'Ventura'. Fui ao Brasil e fizemos uma gravação muito simples e rápida com a banda. Depois do tema estar feito eu sugeri fazermos uma versão só com voz e violoncelo, que acaba por sair na edição especial. 

Com a Marisa Monte a gravação foi à distância?

Não. Recebeu-me de portas abertas em sua casa. E quando chego também lá estava o César Mendes, um dos músicos que faz parte dos Tribalistas. Estivemos a cantar músicas antigas e outras inéditas, que ela tinha guardadas em arquivo. Apresentou-me vários temas que tinha feito com o César, com o Arnaldo Antunes, com o Carlinhos Brown. E de repente apareceu esta canção do Arnaldo, 'Chuva no Mar', começámos a cantá-la, começou a soar bem e a Marisa disse, 'é capaz de ser a música que estás à procura'. E depois quando enviaram a gravação tinha as percussões do Carlinhos Brown. Para mim é uma honra. Apesar de parecer muito simples, é um tema muito profundo e bonito. 

O Brasil é um país especial para si.

É uma segunda casa, onde me receberam de braços abertos pessoas que nunca pensei conhecer na vida. E que me influenciaram, na minha música, na minha pessoa. Evoluí ao som destes músicos, tal como com o Chico Buarque, o Milton, o Caetano Veloso, a Nana Caymmi. Passei a adolescência a ouvir estas canções e a sonhar com este universo. Sinto-me uma pessoa muito livre na música. O fado liberta-me, não me prende. Assim como sinto necessidade e responsabilidade em defender uma identidade que é minha, que é o fado e a música portuguesa, é o fado que me leva a estas pessoas. Há uma troca de identidades, é algo de diferente e especial que atrai uns aos outros.

Vê-se a fazer um disco sem fado?

Não me vejo a negar nada. Gosto primordialmente de cantar o fado. Mas adoro interpretar, sinto-me intérprete. E sinto o desafio, sobretudo no Brasil, que tem a mesma língua, é muito imediato que um cantor se influencie por aquela cultura. Têm poetas maravilhosos, a forma como brincam com as palavras é de uma liberdade extrema.
Por que razão não faz um dueto com outro fadista? Visto de fora, parece que há uma rivalidade.
Tenho falado imenso sobre esse tema. Há um contraste enorme com a liberdade e abertura dos artistas brasileiros, que estão constantemente em colaborações. É maravilhoso assistir a isso. Por cá, é algo cultural, não se trata de rivalidades. Os portugueses são pessoas mais fechadas. Agora, que há uma vontade da minha parte de mudar isso, há. 

No texto de promoção da editora lê-se que este disco é uma prova de fogo. Sentiu isso?

Só não sinto isso porque estou muito apaixonada pelo disco. Sinto-me muito confiante. A prova de fogo sugere algum medo. É uma prova de fogo colocar-me neste canto, neste lugar de liberdade, porque talvez haja muitas expectativas, mas não me sinto muito pressionada. A única forma que tenho de respeitar o público que me tem seguido e acarinhado é continuar a mesma receita, que é fazer aquilo de que eu gosto.

Em relação aos discos anteriores, que destaca de diferenças, além de uma maior maturidade?

Há mais instrumentação e apesar de só haver um dueto, existem bastantes convidados. E a ligação não se faz só com o Brasil, temos o Javier Limón, de Espanha, um território muito querido para mim. 

Não sente necessidade de reflectir nas suas músicas questões sociais e políticas?

Faço o que eu mais gosto e no que acredito. Não tenho no disco nenhuma mensagem claramente interventiva. Mas tenho uma preocupação em falar sobre muitos assuntos, porque cansa-me falar só sobre o amor ou só sobre emoções. Tenho neste disco por exemplo um poema sobre a forma como os homens se questionam no mundo, 'A Ponte'. 

Vê-se a intervir politicamente?

Não. Sinto que esse não é o meu legado. A minha vocação é cantar. 

cesar.avo@sol.pt