O renascer dos pedreiros

A torre da Cooperativa dos Pedreiros [CP] é um elemento marcante da paisagem do Porto. O edifício, situado na zona mais alta da cidade, impõe-se ao olhar dos portuenses há quase 50 anos.

Mas a história da instituição é mais antiga do que isso. Fundada em 1914, alguns dos edifícios mais emblemáticos da Invicta nos últimos cem anos saíram desta Cooperativa. A Câmara Municipal do Porto, a Estação de São Bento, o Teatro Rivoli, o Banco de Portugal e a Rotunda da Boavista são apenas alguns exemplos. No museu da Cooperativa dos Pedreiros um mapa marcado com dezenas de alfinetes constrói o percurso edificado na cidade e no mundo. A projecção internacional surge em 1937 quando o seu fundador, José Moreira da Silva, contacta com uma nova técnica de trabalhar o granito. A partir daí, a mestria da instituição ultrapassa fronteiras, chegando a locais tão remotos como o palácio que foi de Saddam Husseim, em Bagdade, cujas colunas são obra dos pedreiros portuenses. “Ainda hoje não há ninguém que faça colunas de granito polido como a Cooperativa”, afirma o historiador Joel Cleto, durante uma visita guiada ao local.

Em 1977 a Cooperativa mudou de instalações para Leça do Balio e deixou a fábrica da Rua D. João IV (Porto), nas traseiras da torre. “Todo o Porto moderno, desde 1914, foi construído aqui”, explica Inês Moreira, a curadora de 'Technical Unconscious', um projecto europeu liderado pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, que nos últimos meses procurou revitalizar o espaço devoluto da fábrica com uma programação de performances, instalações, workshops, conversas e visitas guiadas ao encontro do património material e imaterial da instituição. “Quem conhece o espaço tinha curiosidade em ver, quem não conhecia acabou por descobrir”, continua a curadora. “É uma fábrica no centro da cidade, com uma arquitectura erudita. Foi desenhada por Moreira da Silva, que se casou com a filha de Marques da Silva [autor de projectos como o da Estação de São Bento e da Casa de Serralves]. Juntos construíram as instalações de trabalho e esta emblemática torre”. Inês é arquitecta e o seu foco de interesse são os espaços pós-industriais. A sua relação com a fábrica nasceu fruto do acaso. “Eu vivia num edifício que dava para as traseiras da Cooperativa e tinha muito interesse pelo espaço. Interessa-me perceber o que fica quando esvaziam estes locais. A cooperativa permitiu explorar as técnicas manuais, anacrónicas, a maquinaria que foi sendo retirada e os vários espaços, muito heterogéneos entre si”.

'Ressuscitar o inconsciente técnico' é o mote desta mostra, que está a ser preparada desde 2013, em residência artística, por 12 criadores (dois deles nacionais). Gonçalo Leite Velho, arqueólogo e responsável pelo projecto, refere que “a CP representa bem essa parte do inconsciente técnico e urbano do Porto: está no lugar mais elevado da cidade e domina-a visualmente. Mas a cidade quase passou a desconhecê-la. Passou-a para o seu inconsciente. Há gente que nunca conheceu a Cooperativa”. 

Passado e presente confundem-se na sala de desenho, nas oficinas, no auditório, no museu e no hangar que hoje são as galerias de arte de Technical Unconscious. Estes espaços, que não disfarçam os quase 40 anos de inactividade e onde ainda é possível ver alguns vestígios de uma atarefada vida passada, permitiram explorar a imagética de inconsciente técnico que existe entre os pedreiros.

Entre os 20 projectos que ocupam este histórico local encontra-se o da artista britânica Linda Brothwell, designer do ano em Inglaterra, que explora a questão da técnica dos pedreiros e utiliza granitos diversos provenientes do excesso de produção. Iztok Kovac vem da Eslovénia e desenvolveu um vídeo com 30 participantes locais que cooperaram voluntariamente no processo criativo. Já a proposta do colectivo Guidi & Racco (Canadá e Itália) envolve um complexo processo de desalfandegagem de três pedras oriundas da Palestina. Inês Moreira sublinha o carácter fortemente simbólico deste trabalho, já que “o que interessou aos artistas foi o facto de a identidade judaico-cristã ser reconstruída com pedras de proveniência árabe. Vêm de pedreiras da Cisjordânia para fazer o centro histórico de Jerusalém. Estas contradições interessaram-lhes”.

Além do interesse arquitectónico e histórico, há ainda a questão ideológica do cooperativismo, que se mantém viva. Fernando Martinho é um dos professores da Escola Profissional de Economia Social e cooperante activo.

Durante a visita guiada refere que no 100.º aniversário a instituição quer abrir-se ao futuro através de projectos que dinamizem o espaço. “Criámos uma confederação de cooperativas e estamos a procurar mundialmente um modelo em que os trabalhadores sejam donos do seu trabalho”.

O arquitecto Vitor Rocha é o ocupante pioneiro desta “incubadora de cooperativas”. “A nossa perspectiva do espaço mudou quando nos instalámos cá. Sempre vimos o edifício a partir da cidade. Quando olhamos daqui para a cidade, o ponto de vista muda. O nosso trabalho passará em grande parte pela reabilitação”.

A exposição está patente até dia 22 de Novembro e encerra com uma palestra do esloveno Slavoj Zizek, um dos mais célebres e politicamente incorrectos pensadores da actualidade, na faculdade de Belas Artes.
Já fora do âmbito desta mostra foi celebrada uma colaboração com o Festival de Cinema Documental Porto/Pos/Doc, com a exibição de dois filmes dos anos 80, do realizador Harun Farockl, no Passos Manuel (Porto). No futuro a Cooperativa dos Pedreiros ambiciona ser um “ponto agregador da cena cultural portuense, que se situe num lugar intermédio entre as grandes instituições como Serralves e os pequenos espaços alternativos”, conclui Gonçalo Leite Velho.