Do cante aos animais de loiça

Fazia todo o sentido escrever esta semana sobre o cante alentejano. Infelizmente não tenho muito para dizer sobre o assunto – a não ser que, embora desejasse que o seu reconhecimento pela Unesco pudesse ter repercussões na região, duvido que isso aconteça. 

Em vez do cante alentejano – e no domínio da materialidade – prefiro escrever sobre as realidades que vou encontrando. Desta vez, azulejos e animais de loiça. 

Os azulejos – não os tradicionais mas as réplicas baratas e descabidas – e os bichos de loiça exercem sobre mim uma espécie de fascínio doentio, mais ou menos equiparável aos condutores que param na estrada para ver os feridos de um acidente; ou aos telespectadores que vêem a Casa dos Segredos para depois dizerem que aquela gente é deveras ordinária e que aquele tipo de programas devia ser proibido. 

Eu nunca tinha visto tanto animal de loiça nem tanto azulejo como desde que vim viver para o Alentejo – mas estou agora convencida que talvez seja uma coisa tão portuguesa como o fado e o cante. 

No que respeita aos animais de loiça, quando eu estava em Lisboa vivia fascinada com um dálmata de loiça que espreitava de uma varanda numa das transversais da Rua Morais Soares. Foram muitas as vezes em que, vindo carregada do supermercado, preferi subir um bocadinho a pé em vez de apanhar logo o autocarro – só para olhar para o cão e ver se conseguia vislumbrar a dona ou dono de tão magnífico animal. 

Mal sabia eu que, daí a algum tempo, num monte alentejano, esperava por mim um extraordinário caniche e toda uma família de cães e gatos em miniatura – e não saberia que destino lhes dar. Demorei algum tempo a livrar-me dos bichos, que andaram de saco em caixa até serem doados e eu poder voltar à felicidade suprema de admirar os bichos em casas alheias. 

O mesmo se passa com os azulejos, que são paisagem recorrente por estes lados: bom é contemplá-los em casa alheia. 

É quase tão intrigante como fascinante depararmo-nos, no meio de uma vila ou mesmo da planície alentejana, com casas não com um mas com três padrões de azulejos diferentes nas paredes exteriores! É extraordinário, porque nada nos prepara para aquele espectáculo. E é intrigante, porque é impossível não nos interrogarmos sobre o que terá acontecido ali. Quando é que as casas branquinhas e com aquela barra característica azul ou amarela passaram a estar fora de moda? 

Claro que deixa de ser tão fascinante quando nos toca a nós, que é como quem diz, quando no monte que estamos a remodelar também encontramos azulejos fora da cozinha e das casas de banho. E aí uma pessoa já não sabe o que fazer com tamanho espectáculo, mas sabe que já não pode ficar só a ver. E o que será melhor: pintar, cobrir com placas de mdf como no Querido Mudei a Casa ou pegar num escopro e num martelo e arrancá-los um a um? 

Claro que há sempre a possibilidade de dizer que é mesmo assim – e que um dia virá a ser qualquer coisa como património material da humanidade. 

Não estou a querer comparar umas e outras, mas não consigo deixar de me interrogar sobre estas coisas tão portuguesas como a cultura do bibelot, a mania de subvertermos usos e costumes e de esquecermos as tradições – para mais tarde as desenterrarmos, mas só depois de as vermos reconhecidas pelos outros.