A vida não tem livro de instruções

Viver é uma auto-estrada com estações de serviço capazes de nos virar do avesso. Na maior parte do tempo estamos na estrada, vivemos de rotina em rotina, cansamo-nos, esperamos, festejamos, choramos. Mas de vez em quando temos de parar, esticar as pernas, refrescar a cara, alimentarmo-nos de outras coisas que não as que nos alimentam.…

Dá-me para isto nos dias em que a minha árvore de Natal pisca e faz sombras nas paredes da sala. Penso em estações de serviço e nos que trazem mundos desconhecidos às rotinas de sempre. A genialidade, pois. Em todas as épocas existem génios por reconhecer. Porque o mundo ainda não estava preparado, porque os donos do gosto e da crítica antipatizaram e os colocaram de lado, porque preferiram o silêncio da sua enfermidade criativa à notoriedade dos seus pares, porque sei lá mais… Repare, os Beatles foram recusados pela Decca e aproveitados pela EMI que, com 'Love Me Do', se forraram a ouro e diamantes. Poderia ter-lhes acontecido o mesmo que a outros, gente que marcou os batimentos do mundo, só depois de os seus próprios terem parado. Van Gogh vendeu um único quadro. Fernando Pessoa publicou apenas um livro em português. Nietzsche morreu enlouquecido, sozinho, anónimo. E Shakespeare era apenas o bardo, um tipo vagamente talentoso com quem se podia ir para os copos. Pelo sim pelo não, nunca desvalorizo loucos que se julgam génios incompreendidos porque podem ter razão. 

Por mim, comum mortal, limito-me à angústia de uma página branca, como esta há uns trinta minutos. Devo preveni-lo para este lugar-comum; é que o mais difícil para quem escreve não é a tortura da página antes de ser escrita – essa é a consequência da procura do que, por vezes, não se acha. Complicado é, nessa viagem sem destino, esbarrar com o encontro do que já foi encontrado, com as palavras velhas quando tanto ansiámos pela descoberta de novas, com a repetição de nós próprios. Para quem escreve, o plágio que fere não é a cópia dos outros, essa é uma delinquência moral feita pelos que não contam. O que realmente fere é a constatação de que nos plagiamos a nós próprios. 

Uma mentira que nos tira do que é sério e nos faz perder o pé. Neste Natal, em todos eles, julgo importante dizer estas coisas. É abominável o gosto pela mentira, pelo faz-de-conta, pela ilusão – pronto, já o disse. Faz-nos reféns, obriga-nos a uma prisão de que não nos damos conta e nos enfraquece. A vida passa a ser um palco onde representamos um papel, uma ficção da realidade. Mas não pense que defendo a Verdade. É ridículo escrever cartas de amor a uma palavra de que sei pouco – nessa enorme montanha, escarpada e rugosa, a única coisa que entendo é a necessidade de a procurar, de nunca parar de a procurar. Se a descobrir diga-me, escreva-me uma carta, envie-me um e-mail. E entretanto não minta, dá jeito, agora ou depois. 

Falar destas coisas não é uma regra de três simples. Porque as palavras escritas parecem sempre demasiado impositivas e carregadas de certezas, algo que tenho pouco. Ainda em torno da mentira e da verdade, conheci verdadeiras bestas com razão e delicodoces sem razão nenhuma. Também houve alturas em que, com défice de mimo, preferi os segundos aos primeiros; antes um arrazoado de disparates na boca de alguém amável do que um chorrilho de verdades dos que nos interpelam de uma maneira extemporânea. Tenho as minhas fragilidades, ainda há quem me encante com a mansidão e me continue a dizer o que sei à partida que não está certo, mas entre as duas espécies prefiro os elefantes que partem tudo à volta com o que me faz pensar, me interpela e às vezes destrói. 

A verdade é que vivemos várias vidas numa que parece única. Vemo-lo pelas fotografias; o rapaz que me dizem ter sido eu há trinta, vinte ou dez anos é parecido com o que sou hoje, reconheço-lhe traços e carácter, mas é um outro impossível de reconhecer sem luta ou dúvidas. Como as cartas de amor, as que escrevi e me escreveram; ao lê-las é como se voltasse a um livro de juventude. Nessas cartas absolutas apenas o último amor interessa. Porque palavras assim são escritas sempre no pressuposto de que apenas aquele ou aquela existiram – para trás é uma cidade arqueológica, uma memória literária, quando muito a recordação de alguém que, sendo semelhante a nós, não é o mesmo que somos. 

Tudo isto é bom, faz-nos ser gente em pleno. Passar os anos e ter lastro na viagem. As passas sabem-nos melhor se de cada vida, de cada estação de serviço, levarmos o melhor que conseguirmos. Aquele que eu fui aos 18 anos adorava comer barquinhos de doce de ovos e esperava envergonhado pela meia-noite para saber quantas prendas teria de desembrulhar, as saudades que tive desse rapaz. As saudades que tenho.