A Europa à deriva

Haverá condições para que se produza uma saída da crise politicamente controlada?

Talvez seja uma verdade universal que os momentos que ficam na história são períodos difíceis – por vezes mesmo dolorosos – para quem os vive; nessas ocasiões, os caminhos que se escolhem farão toda a diferença no modo como o futuro será moldado. O que se está a passar no mundo árabe não só ilustra esta ideia como nos deixa perplexos quanto à limitada capacidade real de políticos e analistas teóricos para anteciparem esse futuro; há momentos em que a mola da história parece libertar-se, movida pelas pressões sociais que se acumulam, e as novas lideranças (ideias e protagonistas) nascem desse caldeirão de forma algo descontrolada.

Na Europa, sobretudo desde que a violência das duas guerras excedeu todos os limites aceitáveis, convencemo-nos de que seríamos capazes de controlar essas tensões, definindo as vias a seguir em função de objectivos politicamente assumidos. A União Europeia (UE), com todos os seus distintos espaços de representação e expressão de interesses e o seu modo lento mas seguro de substituir o conflito pela conciliação, é disso expressão clara. Hoje, no entanto, também este método está em causa na UE, começando a instalar-se a dúvida sobre se não serão as circunstâncias, mais do que a vontade política, que definem, em última instância, a agenda.

Na UE (como nos EUA), o fenómeno da ‘globalização’ veio acompanhado da crença nos mercados, bem como da desvalorização do papel dos Estados e das instituições, dos mecanismos reguladores e dos objectivos previamente definidos para a sociedade. A concorrência abafou os conceitos de convergência e coesão interna e alastrou entre os países-membros: a competição fiscal e a arbitragem legislativa instalaram-se. Os interesses do sector financeiro prevaleceram sobre a chamada economia real e os dos importadores substituíram-se aos dos produtores. As instituições europeias (talvez com a excepção do Parlamento Europeu) desapareceram de cena e, em particular, a Comissão e o novo presidente da União deixaram cair o dever de iniciativa, hoje indiscutivelmente monopolizado pela Alemanha (sob a aparência de um directório franco-alemão)…

Haverá condições para que se produza uma saída da crise politicamente controlada? Até agora, e sobretudo desde que a crise rebentou, têm sido as circunstâncias a comandar: só quando a crise financeira o tornou inevitável é que a regulação financeira europeia entrou na agenda da Comissão; só quando as operações especulativas levaram os juros da dívida soberana para níveis incomportáveis é que o Banco Central Europeu saiu da interpretação literal das suas competências (garante da inflação) e se assumiu de facto como garante da moeda única, violando até certo ponto o seu mandato e comprando massivamente dívida soberana; só quando a Grécia entrou em pré-falência, arrastando o euro para um fim precipitado, é que se conseguiu criar (ainda que sem dimensão nem instrumentos adequados) o actual Fundo Europeu de Estabilização Financeira; só quando os ataques sobre Portugal, Espanha, Itália, Bélgica e outros se avolumaram no horizonte é que houve condições para acordar o seu reforço no futuro…

A pergunta impõe-se: quem determina hoje a agenda política da UE? No actual contexto, o que de essencial acontece parece decorrer de uma mera imposição das circunstâncias. Mas, com a Grécia e a Irlanda sem saída à vista (já se discute a venda de ilhas gregas para pagar a dívida!), um desemprego galopante, uma ‘geração parva’ cada vez mais qualificada e desiludida e um crescimento interno insuficiente e profundamente desigual, não corresponderá isso a brincar com o fogo e correr sérios riscos de acabar queimado?