Pregadores do modo de vida

Em contraponto aos hábitos do islamismo radical, é comum ouvirmos a expressão «o nosso modo de vida».  

Ora uma das alegrias fundadoras das sociedades democráticas e laicas é a de, ao contrário das ditaduras (de esquerda ou de direita, se é que esta distinção faz algum sentido prático para alguém), não definirem nenhum 'modo de vida' – nem sequer, para raiva dos invejosos de serviço, 'estilos de vida'. 

O estreitamento da democracia que temos vindo a sofrer nas últimas décadas, alegadamente por causa da crise financeira internacional, tem feito o seu caminho nos corredores mentais das pessoas, afunilando-os também.

A ideia, milhões de vezes repetida, de que não há alternativa à austeridade, acabou por diminuir os sonhos e as expectativas de populações inteiras, empurrando-as para os caminhos da desistência – esse monstro que nos impede de criar verdadeiras alternativas. 

As ciências e as artes têm demonstrado, desde o início do mundo, que a vida é um mar de possibilidades. 
Da invenção da agricultura à luz eléctrica, da anestesia às viagens a Marte, a humanidade não parou de encontrar outros 'modos de vida' diferentes dos estabelecidos. 

Há um problema de base quando quase metade da riqueza mundial está nas mãos de 1% dos seres humanos – e um estudo recente da Oxfam prevê o agravamento deste descalabro nos próximos dois anos. 

Garantir um equilíbrio mundial que passa por uma redistribuição da riqueza não é uma questão de 'modo de vida', mas de civilização. À medida que o conceito de 'competição' se foi tornando central e obrigatório na cartilha económica e ética dos tempos modernos, descartou-se o termo 'civilização' para abolir a ideia, tida por primária, de comparação. Interessante paradoxo, que entretanto faz muito mal a muita gente. 

Na sequência do massacre à redacção do Charlie Hebdo, esgotada a união inicial em torno do choque, entrou-se no tempo do 'mas', com o seu cortejo de elucubrações filosóficas escapistas – incluindo aquela, aventada por boas e cultas almas, de que a «nossa liberdade de expressão», descendente de Lutero e de especificidades europeias, deve parar à porta da não-liberdade dos outros, que não têm a mesma genealogia. 

É o esplendor do paternalismo condescendente (e cobardolas, pormenor pouco filosófico mas pertinente). Prevê-se que hoje seja de novo chicoteado em praça pública, na Arábia Saudita, um homem que entendeu, apesar de árabe, ter direito a pensar pela sua própria cabeça. 

E milhões de seres humanos são torturados e mortos apenas por quererem pensar e viver livremente. 
A liberdade não admite 'mas' – e, sobretudo, não pode continuar a ter filhos e enteados, consoante as culturas. O terrorismo de Estado é tão terrorista quanto aquele que não tem sede nem nação. 

Um conjunto de opinadores supostamente liberais aproveitou o massacre para dizer que ele resulta da atenção da Europa às chamadas «causas fracturantes»,  em vez de se preocupar com a segurança e a economia.

Como se a atribuição de direitos a mulheres e homossexuais impedisse os restantes aspectos da governação. A mensagem implícita é  que a manutenção de sociedades mais 'tradicionais' não excitaria tanto os radicais islâmicos. A eterna mensagem do medinho e da resignação. Não, isso é que não é modo de vida.