O último profeta

Foi celebrado ainda em vida como um dos últimos grandes heróis do nosso tempo, alheado de egoísmos, materialismos e mundanidades. Foi proclamado o derradeiro asceta pós-moderno e pós-contemporâneo. Consta que terá sido o único orador a quem o Power Point nunca lhe falhou. O último dos moicanos, mas na tecnologia. Teve direito a biopic e…

Steve Jobs, CEO e fundador da Apple, a empresa que revolucionou a forma como consumimos música através do iPod e a forma como comunicamos, através do iPhone, conseguiu criar uma relação de dependência sem precedentes entre os objectos que produziu e os consumidores, de tal forma que consumir Apple se tornou uma espécie de religião.

O feitiço lança-se muito bem: a primeira vez que se abre uma embalagem, o consumidor é enfeitiçado por uma fragrância que, não importa o número de vezes que a venha a desfrutar, o fará sempre sentir único. 'Intuitivo' passou a ser o adjectivo mais utilizado por toda a gente que, dos telemóveis que já deixavam tirar fotografias, passou para os iPhones, que eram quase tão bons como os filofaxes. Utilizar um filofax era intuitivo porque toda a gente sabia o que fazer com um agenda, que não é mais do que um calendário-livro; agora, um telemóvel que no fundo era um pequeno computador… Aí a coisa ficava difícil, só que, lá está, como era muito intuitivo, o povo aderiu em massa e o iPhone tornou-se líder de mercado e factor diferenciador entre quem estava in e quem ficaria out.

Feito à imagem do seu criador, um ecologista flamboyant, das ecologias high-tech, da qualidade durável vs. materiais descartáveis, nem o preço exorbitante afugentou o consumidor exigente, sofisticado, new-age, inteligente e eficaz, ambientalista, ecológico, solidário para com causas sociais e por aí adiante. Apesar de ser tudo uma óptima venda de banha da cobra.

Com falinhas mansas, enfeitiçou-se a nata dos consumidores que dificlmente conseguirá libertar-se do jugo tirano e alienador da facilidade aparente.

E digo 'aparente' porquê? Porque têm surgido, cada vez com maior frequência, notícias que dão conta do descontentamento, também ele intuitivo, dos clientes Apple, especialmente com o seu produto-estrela, o iPhone. Queixam-se que o aparelho se actualiza vezes demais e que o lançamento sucessivo de novas versões quer físicas, quer de software, dificultam a utilização ideal dos dispositivos: para as versões mais antigas, os sistemas operativos tornam-se incompatíveis (dentro do circuito já por si exclusivo), ocupam demasiado espaço na memória dos telefones, têm vontade própria e coagem o utilizador a registar-se em mil coisas que não lhe interessam. Já para não falar na terrível nuvem e no inferno que foi a transição de formato de carregador, mais a longevidade da bateria de qualquer um dos aparelhos. Quem compra um iPhone tem depois de comprar uma capa, uma película para proteger o ecrã, um carregador extra para trazer consigo, um carregador para o carro e ainda uns gigas na cloud, porque cada vez que quiser usufruir da poderosíssima máquina fotográfica do seu iPhone para captar o momento (que é, no fundo o princípio básico da fotografia), caso não tenha espaço livre, vai perdê-lo enquanto apaga irreflectidamente qualquer coisa para libertar espaço na memória.

Quando a fidelidade do consumidor o exclui, não respeita as suas necessidades e segue obstinadamente o caminho oposto, o caso dá-se por mal parado. As vendas do iPhone estão em queda, não é novidade nenhuma. O iPod Classic saíu de circulação e atinge preços históricos em vendas em segunda mão. Augura-se um fim não muito maravilhoso para a marca, com os utilizadores não muito satisfeitos e a declarar abertamente que acabam por voltar a consumir os produtos por inércia, porque recuperar dados com outros dispositivos é mais um pesadelo.

Dizem os entendidos que Steve Jobs deve andar às voltas na campa. Não sei. Mas parece que o rumo da empresa conscienciosa e exemplar se perdeu muito rapidamente com a perda do seu líder, que era afinal a chave do monoteísmo.

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