No laboratório do palco

Pessoa, pela voz de Álvaro de Campos, já dizia em inícios do século passado, que “o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo”. Décadas mais tarde, em 1985, o norte-americano Bruce Sterling descrevia, num romance de ficção científica, um sarau de poesia em que os poetas declamavam equações matemáticas complexíssimas. E…

Mas um grupo de jovens neurocientistas da Fundação Champalimaud (FC) não tinha estes versos presentes quando se lembrou de juntar, em palco, arte e ciência. De facto, Ana Rita Fonseca, Patrícia Correia e Samuel Viana traziam na bagagem uma conferência que organizaram na FC em que o artista plástico brasileiro Vik Muniz e o neurocientista Rui Costa expuseram um diálogo fecundo entre as duas áreas. O trio terá pensado depois: e por que não continuar?

Foi o que fizeram. Daí resultou uma “loucura” de dois anos, diz a curadora Madalena Wallenstein, do CCB – que realizou esta iniciativa em co-produção com a FC. O ciclo vai ter o seu desenlace hoje e amanhã, na conferência Raízes da Curiosidade – Simbiose da Arte e da Ciência, no Auditório da FC.

O encontro traz especialistas da ciência de vários quadrantes e as duplas de neurocientistas e de artistas que conceberam – e interpretaram – espectáculos e ateliês de cruzamento entre a arte e a ciência, em Novembro e Dezembro, no CCB.

Os pontos de partida para os espectáculos eram simples, como 'O que sentimos quando ouvimos música?' ou 'Podemos dançar como um electrão?'. O fio condutor era um encontro. “Por isso, quisemos chamar ao projecto Raízes da Curiosidade, que é o que nos parece ser o ponto de contacto entre as duas áreas”, avança Patrícia Correia.

A primeira dificuldade foi classificar estes momentos curiosos. Era um espectáculo? Era uma demonstração científica? Até porque as cinco duplas que se formaram podiam, efectivamente, realizar experiências científicas ao mesmo tempo que desenvolviam uma expressão artística em palco.

O conceito, recorda Madalena Wallenstein, “é muito inovador”. Tanto que causou estranheza em determinados momentos: “Os cientistas que vieram ver o espectáculo diziam que era mais artístico e os artistas diziam o contrário, que era mais científico”. E era, de facto, difícil catalogar pelas vias clássicas o que se passava em palco. Por isso, a equipa decidiu, em vez de espectáculo, chamar ao que o público poderia ver, explica a curadora, “performance-conferência”. A ideia inicial de Ana Rita, Patrícia e Samuel tinha sido apresentada ao CCB em 2012, quando a instituição lisboeta analisava as propostas. O projecto Raízes da Curiosidade, pela tal simbiose que prometia no próprio título, “cintilou no meio de 800 projectos”, recorda Madalena Wallenstein.

A ciência sobe ao palco

A constituição das equipas seria depois feita numa residência. Era quase um encontro entre nativos de planetas diferentes. Apesar do clique quase instantâneo entre algumas das duplas, “houve conflitos de vários níveis”, lembra Patrícia Correia. A desenvoltura dos cientistas em palco parecia difícil ao início. Mas, sobretudo, o que parecia pesar, obviamente mais aos investigadores, era “como iam pôr a ciência deles em palco”, completa.

Ana Rita Fonseca recorda o trabalho de uma das duplas, formada por Maria Inês Vicente e a compositora Teresa Gentil, que tentaram responder à questão “qual é a razão biológica da música?”. Para isso, recorreram à música tradicional portuguesa recolhida por Michel Giacometti.”Tentaram entender a relação entre a nossa fisiologia e o ritmo e composição da música”. A simbiose conseguiu-se: foram medidos os batimentos cardíacos de Teresa Gentil, suscitados pelos estímulos de duas músicas diferentes, e integrou-se esse som na apresentação. Maria Inês Vicente pediu ao público que pusesse a mão no peito para tentar, também, fazer essa medição.

Por isso, 'procura' é uma das palavras-chave do encontro entre arte e ciência. Outra dupla, formada, do 'lado' da ciência, por Alex Gomez-Marín e do campo das artes pela bailarina e coreógrafa Sara Anjo, pôs vários problemas em palco. Gomez-Marín, lembra Patrícia Correia, acabou por começar com um monólogo 'à cientista' – as dúvidas foram o ponto de partida: “O que estamos aqui a fazer? O que é a ciência? O que é a arte?”. A apresentação começava com um vídeo que exibia um rato a andar numa roda de comportamento. Seguia-se a entrada da bailarina, que dançava num espaço que podia ser uma área de comportamento e ia representando, com os movimentos, imagens que eram projectadas – Sara Anjo podia ser uma planta, um neurónio ou um electrão…

A memória tem forma de cavalo-marinho

A acompanhar todo o processo esteve sempre uma presença silenciosa, mas omnipresente. Cláudia Varejão, documentarista, foi convidada, justamente, a fazer um documento desta aventura. O resultado foi Semear o Tempo, outro objecto curioso que traduz por imagens, justamente a curiosidade e a procura. “Estive sempre presente nas residências deles. Vi tudo e filmei tudo”, recorda. O trabalho acaba por ser uma homenagem à ideia de memória e a ciência revelava, afinal, surpresas estéticas: “Onde se situam as nossas memórias? Numa parte do cérebro que é o hipocampo, que tem a forma de um cavalo-marinho, o que é uma ideia poética”. Afinal, os matemáticos e os físicos também se referem a equações inalcançáveis pelo comum dos mortais como algo 'elegante' e 'belo'.

Cláudia seguiu um método peculiar para construir o filme. Não se limitou a filmar e a documentar acontecimentos numa linha cronológica. Quis perceber um pouco mais do que ia na cabeça dos seus protagonistas e fez-lhes, por carta, um conjunto de perguntas simples. “As minhas perguntas eram da ordem do 'eu sou…' e eles deviam completá-las. Não podiam, por isso, ter uma linguagem muito complicada”.

O filme, exibido hoje no auditório da FC, “ainda está quentinho” e assim será 'servido'. Tem 30 minutos e não é certo que passe por um provável futuro comercial.

Para Cláudia Varejão, de qualquer modo, foi uma estreia no mundo e nos “códigos” muito diferentes da ciência. “Foi um confronto grande com o mundo pragmático”, conta a realizadora. Mas acabou por perceber que essa distância entre linguagens não o era em conteúdo. Percebeu, frequentemente, que “havia duas pessoas a dizer a mesma coisa por palavras diferentes”. E concluiu que “separar ciência e arte é impossível”.

O mesmo considera Madalena Wallenstein, para quem a maratona de dois anos em torno do projecto pode apontar para outras vias criativas no futuro. “O conhecimento é uno e só se separou por necessidade histórica”. Há, sem dúvida, uma raiz de que fala o título do projecto e que une os dois mundos. E essa raiz é dupla: “procura e curiosidade”.

ricardo.nabais@sol.pt