2 de Março de 1965 marca o dia em que o mundo começou a familiarizar-se com o retrato um pouco ficcionado da família austríaca Von Trapp. Mas muitos espectadores americanos e alguns europeus já tinham ouvido falar deles, os Trapp Family Singers.
A sua história é parecida com a do filme, mas começou uma década mais cedo e, claro, foi romantizada. Em 1926 a noviça de 21 anos Maria Kutschera – uma órfã criada por um tio socialista e anti-clerical e convertida ao mais rigoroso catolicismo – foi ensinar uma dos sete filhos de um viúvo, o barão Georg Von Trapp, 25 anos mais velho.
Rapidamente conquistou as crianças. O barão, um herói nacional na I Grande Guerra, apaixona-se por ela. Maria conta na sua biografia que o amor de Georg não foi logo correspondido, apesar de “gostar dele”. De qualquer forma Von Trapp perguntou-lhe se queria “ser uma segunda mãe para os seus filhos”. E Maria aceitou. “Deus fê-lo fazer a pergunta da maneira certa porque se só me tivesse pedido para casar com ele talvez não tivesse dito sim”.
Casaram em 1927 e, aos poucos, a mulher que estava decidida a ser freira rendeu-se. “Aprendi a amá-lo mais do que alguma vez tinha amado”. Do casamento resultaram três filhos, a somar aos sete do viúvo – os mesmos sete do filme, cinco raparigas e dois rapazes, mas com nomes e idades diferentes.
Rupert, Agathe, Maria Franziska, Werner, Hedwig, Johanna e Martina e não os ficcionados Liesl, Friedrich, Louisa, Kurt, Brigitta, Marta e Gretl.
Tal como os Von Trapp do filme, abandonaram a Áustria. Mas, lá está, não fugiram de noite pelas montanhas.
O banco onde o barão tinha a fortuna faliu e a família ficou em dificuldades. Maria, tão decidida e inventiva como no filme, decidiu começar um coro composto por ela e as crianças: o Coro Von Trapp .
O sucesso não tardou e tudo corria bem até à chegada de Hitler. Georg recusou hastear a bandeira nazi, regressar à marinha e, conta-se, deixar a família cantar no aniversário do ditador. Assim, em 1938 aproveitaram uma digressão para ir para os Estados Unidos, decididos a não regressar a casa.
Uma cantora de ópera ouviu-os actuar num parque e o sucesso recomeçou, agora no Novo Mundo. Americanizaram o Coro Von Trapp para Trapp Family Singers e cantariam durante 18 anos, até 1955.
Entretanto, Maria vendeu os direitos da história da família a uma produtora alemã. Estes fizeram dois filmes (em 1956 e 1958) e, por sua vez, revenderam os direitos aos americanos que realizaram ‘Música no Coração’.
O filme – e as canções escritas por Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II – foi um gigantesco sucesso e rendeu milhões, mas pouco ajudou os Von Trapp.
Em termos financeiros receberam quase nada. E em termos pessoais às vezes as coisas eram bastante complicadas. Em 2008, numa entrevista ao New York Times, o filho mais novo do casal, Johannes, actualmente com 76 anos, desabafava: “Não podia dar o meu nome em lado nenhum que logo as pessoas começavam ‘Oh, é da família…”. “O filme é óptimo, mas uma versão americanizada da minha família”. “Estava farto de ser visto como uma personagem da ‘Música no Coração’”, acrescentou.
Antes, em 1998, ao mesmo jornal, explicava: “A minha família não era aquilo…. O nosso interesse era o bom gosto, a cultura, todo o padrão das pessoas de classe alta de que se goza em filmes como o ‘Titanic’. Tínhamos sensibilidade ambiental, sensibilidade artística. ‘Música no Coração’ simplificou tudo. Acho que talvez a realidade fosse ao mesmo tempo menos glamorosa mas mais interessante que o mito criado pelo filme”.
Outra grande queixa dos irmãos foi a forma como Georg foi retratado. O pai não era nada como o ditatorial controlador Von Trapp do filme.
Johannes acabou a gerir a estalagem comprada pela família com o dinheiro arrecadado com a música. O estabelecimento, no Vermont, EUA, foi durante décadas governado pela sua mãe e agora é-o pelo seu filho Sam. A Sam Von Trapp já não pesa o nome como ao pai pesou. E, agora, até há novos Von Trapp a actuar: Justin, Amanda, Melanie e Sofia, quatro irmãos, netos de Werner, que fazem sucesso com os Von Trapp Children
Hoje, só sobrevivem os três filhos mais novos do casal: além de Johannes, as suas irmãs mais velhas Rosmarie e Eleonore.
Maria von Trapp morreu em 1987, e não era o anjo ficcionado por Julie Andrews. Tinha acessos de fúria e gritava e batia com as portas. A enteada Maria, que morreu no ano passado com 99 anos, contou em 2003 que a madrasta tinha um “feitio terrível… de um momento para o outro não sabíamos o que lhe tinha dado. Não estávamos habituados àquilo. Mas encarávamo-lo como uma tempestade que iria passar, porque no minuto a seguir já era querida outra vez”.
Conheça-a, em palco com Julie Andrews
Ouça os Von Trapp reais
Os ficcionados a cantar Edelweiss
E a versão da mesma música pelos netos Von Trapp