Que atire a primeira pedra

Quem trabalha a recibos verdes e nunca teve uma dívida à Segurança Social que atire a primeira pedra. Isto a propósito de humanizar, que também não é para todos.   

Decorria o ano de 2001, e após o espectáculo do grupo de teatro escolar em Junho, a Câmara Municipal fez-me saber que gostaria que apresentasse, juntamente com o meu querido amigo e também actor Hugo Sovelas, os espectáculos da Feira da Luz desse ano, em Setembro. Tinha cachet. Cumprido o meu contrato, tive de abrir actividade nas Finanças para receber. Nunca me informaram de nada relativamente à Segurança Social.

Decorria o ano de 2009, quando ganhei o primeiro apoio para a realização de um espectáculo meu. Para auferir o montante a que me candidatei, tive de apresentar duas declarações de não-dívida, uma às Finanças e outra à Segurança Social. Fui aos serviços e solicitei as ditas declarações. Nas Finanças tudo óptimo, 'aqui está a sua declaração, pague-me x por um papel que eu vou aqui carimbar e rabiscar em forma de assinatura que valida tudo', mas na Segurança Social constava que devia novecentos e não sei quantos euros. Tratei de investigar a que é que se referia esse montante e descobri que dizia respeito ao facto de a minha actividade ter ficado escancarada no dia em que a 'abri', de o ano de isenção já pertencer aos anais da história e de eu ter então uma série de meses em dívida. Eu, que nunca me tinha inscrito na SS, até tinha uma dívida! 

Também descobri que, ao contrário do nosso primeiro-ministro, as minhas contribuições à Segurança Social não eram (e continuam a não ser) 90 eurinhos: para exercer o meu ofício de actriz, o valor mensal das minhas contribuições deveria ter rondado os 90 eurinhos de que o nosso Primeiro se esqueceu, mais 100 por cima. Actividade aberta para o pessoal com o código número 2010 são 190 eurinhos por mês. Se quisesse encetar a minha actividade enquanto criadora de espectáculos, tinha de fazer as pazes com os senhores da Segurança Social. 

Paguei e percebi nesse instante que a minha vida de contribuinte iria ser um inferno, pelo que me fui informar de tudo. Muitas senhas e esperas depois, aprendi, na extinta Loja do Cidadão dos Restauradores, com uma funcionária das Finanças absolutamente maravilhosa, a abrir e a fechar actividade como quem abre e fecha a porta de entrada automática de um desses serviços. A funcionária em causa ensinou-me que esta seria a única forma de conseguir esticar os míseros tostões que a malta artística consegue ganhar. E como se passam muitos meses sem que alguém precise de um recibo meu, aprendi a juntá-los todos e a abrir actividade apenas, e só, quando se justifica fazê-lo. Pronto. É assim que consigo, até hoje (porque pessoal de 1985, os contratos existem: eu já tive um!) manter-me à tona e à margem das pescarias aos contribuintes. 

Não pude deixar de me rir no dia em que essa funcionária das Finanças, qual Madre Teresa dos Restauradores, me disse que os recibos verdes só compensavam se os rendimentos mensais fossem superiores a três mil euros. Verdade. Mas eu nunca vi, durante a minha vida, três mil euros todos juntos. 
Quando veio a lume esta notícia do nosso Primeiro, não pude, também, deixar de me rir. Afinal, ele também já foi precário. Ele também já trabalhou a recibos. Ele também já viveu na corda bamba. Ele é humano. LOL.

E depois pensei assim: sendo o nosso primeiro-ministro afinal humano, será que quando se candidatou a um apoio assim um bocadinho mais importante que o meu, não teve de apresentar umas declarações de não-dívida? 

Depois pensei que quando um artista destes se candidata ao apoio do seu povo, não se devem pedir essas coisas, porque até parece mal, não é? 

Lembram-se da crónica 'O Amante Impetuoso' sobre uma antiga inquilina da minha casa que recebe molhos de cartas das Finanças, que ignora graciosamente porque nem sequer cá mora e nunca se deu ao trabalho de alterar a morada fiscal? Em bom rigor, ela não sabe se tem dívidas, não é? Nunca viu a cor às cartas!… O nosso Primeiro está igual. Diz que só soube da dívida à Segurança Social quando esta prescreveu, em 2012. Acontece, coitado. E também – irra, que é só vontade de implicar! A dívida não prescreveu já? Então está tudo bem, não está? 

joanabarrios.com