Quando encontro um homem de bigode

É a ideia mais estúpida de sempre, assumo-o. Mas não me sai da cabeça, o que talvez possa explicar muita coisa. Explico. Um homem de bigode é uma criança que se recusa a crescer. Porque entre todas as explicações para o uso de pêlos entre o nariz e o lábio superior, a única com lógica…

Hoje estou nisto. Ideias parvas, lugares comuns, coisas aparentemente sem nexo que, às duas-por-três, acabam por fazer sentido. Talvez apenas na minha cabeça, coloco a comprometedora hipótese. Outra verdade mais do que adquirida é a ideia de que os gordos são mais bem-dispostos, divertidos e positivos do que os magros. Não sei se o são; aqui, como em tudo o resto, importa-me mais a largueza da viagem do que a estreiteza do que me é dado por adquirido. Mas uma coisa é certa: gosto dos gordos que flutuam e dos magros que têm um peso para lá dos quilos apontados pela balança. Gosto de quem me faça acreditar que é possível o optimismo, uma gargalhada, um abraço sem peso. Ou com todo o peso do mundo. Um abraço inteiro.

Lembro-me de um amigo de infância que era assim, o Batata. Gordo que abraçava como se flutuasse. Andávamos de rua em rua, tenho a ideia que corríamos por Campo de Ourique, o bairro da nossa infância. Por voltas e revoltas que dê volto sempre à mesma rotunda. Podemos viver em várias casas ou conhecer ruas e ruelas ao detalhe, mas apenas as rotundas de infância se confundem com o que em nós são entranhas. Por isso, continuo a passar vezes sem conta pela Correia Teles, a subir a Sampaio Bruno até à Manuel da Maia, a pressentir a Ferreira Borges com árvores de enormes abóbadas, e a descer a Tomás de Anunciação ou a Azedo Gneco como se lá estivesse, como se fosse ontem. Deixei-as há tantos anos, mas elas nunca me abandonaram. Tenho-as como um cordão umbilical impossível de cortar. 

E as igrejas também, a de Santo Condestável acima de todas. Muito bonita. Quando partir talvez seja ali que o meu corpo se despede, não sei. Agora vem-me outra ideia em que (aposto) também já pensou: será possível sermos convidados para o nosso próprio funeral? Não é sinistro o que digo, afinal de contas não deixa de ser importante. Se tenho de viver o melhor possível esta vida, preocupa-me a ideia de me levarem para uma viagem longa sem me permitirem cruzar a perna num banquinho com vista para os que de mim se despedem. Veremos se tenho sorte. E aviso já: farei com que me vejam… de uma outra maneira. 

Pode ser divertido, quem sabe?
Mas aviso com solenidade que me irritam as missas de corpo presente. 'Como se chama o irmão ou a irmã', perguntam tantas vezes os padres ao chegar. Também vi o contrário, encomendações de almas por sacerdotes íntimos dos falecidos, mas são raridades, excepções. Nas cerimónias habituais, antes da água benta e das profecias, o morto despede-se dos vivos com palavras pesadas de rotina, burocráticas, ditas sem paixão. 'Como se chama o irmão' ou a 'irmã' perguntaram-me na partida dos meus pais e avós. Respondi-lhes. Mas para dentro fiz eu as despedidas, como se os padres não passassem de uma assombração, actores num palco. Se Deus precisasse de palavras mágicas para receber almas confusas, se necessitasse do sábio carimbo dos padres, estaríamos bem lixados. 

Isto não é fácil. E quando dizemos o inverso mais depressa encontramos uma parede pronta a esmagar-nos as certezas. É matemático. Viver é fácil, nós é que complicamos, absoluta verdade. Mas estou pouco certo que, não complicando, algo de substancial mudasse. Falo de um destino, de Deus? Talvez esteja, não sei. Penso mais no que fazemos de memória, na maneira como nos tornamos apenas sobreviventes do dia-a-dia, como desistimos de jogar, como abdicamos de nós. Fazemos de memória o que deveríamos fazer de convicção. Rezar, por exemplo. Quantos de nós, os que rezam, não o fazem apenas mecanicamente? De memória, como bonecos que andam a pilhas, repetimos e repetimos e repetimos. 

A maioria dos que oiço falar sobre Deus, mesmo quando citam escrituras e palavras sagradas, falam apenas de si próprios. Definem-no com os seus valores, a sua necessidade de respostas, as suas angústias e o seu sentido de justiça. Vêem-no à sua semelhança. Como se fosse um deles. Como se fosse do Benfica ou do FC Porto. Ou português e não chinês. Ou do Vaticano e não de Meca. Mata-se em seu nome. Trai-se em seu nome. Organizam-se conferências em seu nome. Vendem-se as suas respostas. A verdade, a linha justa, o melhor programa de vida. Para a maioria, Deus é a resposta, todas as respostas. Para mim, é apenas a pergunta. 

Enfim, melhor ficar por aqui. Porque no instante em que abrimos a boca para contar do que em nós é profundo, condenamo-nos a ser o que ficará eternamente aquém. Porque o pensamento antes das palavras, qualquer que seja, é sempre mais rico; quando o transpomos para os outros, por mais sedutores e hábeis que sejamos a contar uma história, nunca conseguimos dizer tudo. Mas temos que continuar a tentar. Fazer desse rio de silêncio, onde tudo nos parece tão claro, um mar de novas palavras – talvez aí possam ouvir o que não dizemos. O que não dizendo sabemos que pertence ao mais íntimo dos íntimos.