Rolls Royce, do cavalheirismo à fanfarronice

A ascensão de Hitler e do partido nazi ao poder em 1933 provocou, como se diz hoje, uma ‘fuga de cérebros’ da Alemanha sem precedentes. Daí em diante, professores, artistas, arquitectos, intelectuais, cientistas e escritores trocaram o país por paragens mais democráticas e mais seguras, contribuindo para que os EUA assumissem a liderança em questões…

Com a mudança para Nova Iorque, Panofsky passou a escrever em inglês e o tom dos seus textos tornou-se mais terra-a-terra e mais ligeiro. Ele próprio reconheceu essa viragem (para melhor, na sua opinião): “A língua alemã infelizmente permite que um pensamento bastante trivial declame por detrás de uma cortina de profundidade aparente. […] Quando fala ou escreve em inglês, até um historiador da arte tem de saber mais ou menos o que quer dizer e dizer o que sabe, e esta obrigação foi extraordinariamente saudável para nós», escreveu num texto autobiográfico.

Um exemplo desta mudança foi o ensaio com o título intrigante 'As origens ideológicas do radiador Rolls Royce'. Nele curiosamente o autor quase não falava sobre automóveis, detendo-se antes sobre o jardim inglês, que via como uma perfeita encarnação do ADN britânico – uma síntese entre controlo e liberdade, entre ordem e assimetria.

Também a frente do Rolls Royce, concluía Panofsky, manifestava esse compromisso: por um lado, o classicismo do radiador fazia lembrar as caneluras de uma coluna grega; por outro lado, havia o aspecto de fantasia da pequena estatueta chamada 'Spirit of Ecstasy', espírito do êxtase. A figura da mulher alada inspira-se numa escultura antiga, a 'Vitória de Samotrácia', mas ao mesmo tempo – e agora já sou eu que o digo – faz lembrar uma personagem de Peter Pan, uma peça de teatro estreada em 1904 e transformada em romance de fadas em 1911 (a Rolls Royce foi fundada em 1906 e a pequena estátua apareceu pela primeira vez em 1910).

Além da originalidade e irreverência, o ensaio de Panofsky tinha outro mérito: o de considerar um automóvel, normalmente visto como uma máquina ou um mero produto industrial, como um objecto digno de um estudo de alta cultura. Os automóveis constituem uma parte fundamental da paisagem urbana – e, no entanto, nem sempre lhes damos a atenção que merecem.

Vejamos agora o caso do mais recente Rolls Royce, o Serenity. Se os antigos Rolls Royce eram herdeiros da cultura clássica, o novo modelo parece ter ido buscar inspiração a outro ícone dos tempos modernos, o Hummer (um imponente todo-o-terreno que foi usado na guerra do Iraque). A grelha, por sua vez, parece concebida para não se danificar em caso de atropelamento. Para bater e seguir em frente. O Serenity já não encarna os valores de elegância e cavalheirismo dos velhos modelos. Robusto, ostensivo e de certa forma 'fanfarrão', tem demasiado em comum com os novos-ricos do nosso tempo. Seria capaz de apostar que até foi feito a pensar neles.

jose.c.saraiva@sol.pt