Pelo plástico ou pelo cano?

A história parece uma anedota, mas ilustra bem como funciona o mercado. No já longínquo ano da graça de 2006, uma empresa privada de águas – que comercializa água engarrafada – norte-americana lançou um anúncio muito simples: o nome da marca, referido no rótulo da garrafa, devia-se ao facto de a água “não ter sido…

O feitiço iria virar-se contra o feiticeiro. A companhia municipal das águas de Cleveland testou então amostras de água da torneira da cidade e comparou-as com a água da empresa que promovia tal anúncio. Resultado: não só a água da torneira era muito melhor quimicamente – e potável; portanto, podia beber-se – como a rival engarrafada tinha 6,31 microgramas de arsénio por litro, e era a única a apresentar este resultado. A moral da história foi sentenciada pelo responsável de então das águas de Cleveland, J. Christopher Nielson, ao Washington Post: “Antes de fazermos uma piadola sobre alguém, devemos ter a certeza do que falamos”.

Numa época de reacções instantâneas – a que nem é preciso juntar água – em redes sociais, nem é necessário continuar a história para sabermos o desenlace. A dita água, cuja companhia tem sede na Califórnia, engoliu o preconceito e engarrafou-se para fora daquele estado.

Mas a água engarrafada lança problemas muito maiores. Há quem a considere uma pura inutilidade em países onde o controlo químico, físico e microbiológico é suficiente para que possamos simplesmente abrir a torneira e servirmo-nos. Não é melhor para a saúde, afiançam, é muito mais cara do que abrir a torneira e tem resultados catastróficos sobre o meio ambiente, seja em terra, seja, principalmente, no mar, onde o volume de plásticos atinge hoje a dimensão do equivalente a um continente suplementar. No fundo, deste ponto de vista, são uma manobra típica do marketing, conhecida como 'criação de procura', criando necessidades onde elas não existem efectivamente.

Os problemas da água engarrafada estão explicados de uma maneira divertida num vídeo no YouTube, de Annie Leonard, activista da ecologia e realizadora. O vídeo, intitulado The Story of Bottled Water (História da água Engarrafada) é apenas uma das produções de animação com consciência ecológica da autora e pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=Se12y9hSOM0, com legendas em português do Brasil.

Numa linguagem sem legendas ou manual de instruções está um dilema: afinal, em países em que a água de qualidade parece chegar para todos sem problemas, fará sentido comprar mais uma garrafinha? Qual é a melhor, a que está encerrada em plástico ou a que sai da torneira? “Depende. A água engarrafada tem várias fontes naturais e depende muito das suas características físico-químicas e microbiológicas”, explica Maria Eduarda Pereira, do Departamento de Química da Universidade de Aveiro. “Umas são mais ricas em cálcio do que outras, umas são mais ricas em magnésio, outras têm mais ferro”.

Seja como for, passam por critérios rigorosos de análise até chegarem à garrafa: “A legislação indica quais são os parâmetros a analisar e a periodicidade com que ela tem de ser analisada e ela é distribuída ao consumidor apenas porque cumpre esses parâmetros”. Os tais critérios apertados são uma garantia segura, pelo menos no nosso país, o que faz com que não seja possível dizer com toda a certeza que a da torneira seja superior à engarrafada e vice-versa.

O mesmo se aplica à composição química, particularmente aos compostos que são benéficos para a saúde. Dependendo da região do país e do tratamento a que está sujeita – o mesmo se aplica a outros países – a água da torneira terá propriedades diferentes.

Já quando toca ao problema ambiental, é o desfecho do consumo de água engarrafada que está em causa. Em terra, mas sobretudo nos oceanos, são uma questão de grande preocupação global. “As garrafas de plástico, pela sua composição, quando abandonadas no ambiente, permanecem algumas décadas sem se deteriorarem”, dizem especialistas da Quercus contactados pelo SOL. “Com a presença do sol, poderão fragmentar-se em diversos pedaços de plástico, que com o passar dos anos vão acabar por atingir dimensões cada vez mais pequenas”. O tamanho aqui é documento, mas noutro sentido: “Estes pequenos pedaços de plástico vão ser confundidos por alimento e ingeridos pela fauna marinha, levando-os a asfixia ou à morte pela fome, pelos seus estômagos estarem cheios com estes pedaços”.

O Programa Ambiental e de Conservação dos Oceanos da ONU indica, cita a Quercus, que 80% da poluição marinha nas 12 maiores regiões do mundo é causada pela libertação de resíduos plásticos compostos essencialmente por sacos e garrafas.

É preciso fazer a ressalva – neste bolo estão todos os plásticos que vão parar aos habitats marinhos e não só as garrafas. Mas estas contribuem também para a tal ilha ou continente metafórico.

A Quercus refere ainda um estudo da responsabilidade do Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa – entre 2010 e 2014, a equipa percorreu 11 praias do litoral português, e verificou que há uma predominância de materiais de plástico. Dos 111 mil itens recolhidos, 97% são plástico de diversas origens. Paredes da Vitória (Alcobaça), Matosinhos e Sines eram as praias com “número preocupante de detritos de plástico por metro quadrado”.

Se vivemos numa era de tecnologia, não é possível tentar uma barrela aos oceanos? Pois… As composições e os tamanhos dos plásticos são tão diferentes e estão dispersos de tal maneira que estamos perante uma tarefa no mínimo hercúlea. E quem seria responsável pelas limpezas? Quem desembolsaria uma quantia a este nível?

Plástico da discórdia

Há outras dúvidas que persistem, de qualquer modo. Em emails que recebemos, com maior ou menor grau de misticismo associado, expõem-nos os perigos de se reutilizar uma garrafa de água de plástico, por exemplo. Bactérias desenvolvem-se nos restinhos que ficam no fundo da garrafa, a água da torneira não se conserva bem num plástico, etc., etc. Que cuidados devemos realmente ter? O problema maior parece ser mais simples e acontece, continua Eduarda Pereira, “se pousarmos a rolha [a tampa] num sítio qualquer que estava contaminado”. Se a pousarmos, por exemplo, em cima da bancada, num local onde antes já tinha estado um saco que tinha estado no chão, pode haver problemas logo que tapamos outra vez o recipiente de água. “A partir do momento em que está fechado, foi fechado em condições consideradas limpas. Em casa, nunca conseguimos fazer isso outra vez”, acrescenta Eduarda Pereira. “Não é que em princípio do plástico passe qualquer coisa para a água. É mais uma questão de não reutilizar, porque não temos em casa as condições adequadas para garantir que, enchendo e rolhando, continua tão limpo quanto estava antes”.

Mas não há só emails confusos e alarmistas. Há problemas reais, demonstrados por estudos. Um deles é o famoso Bisfenol A, ou BPA, uma substância usada na produção de muitos plásticos e que acabou por ser proibida em diversos países. “No fundo, são compostos com os quais o nosso organismo não tem contacto diário”. Quando entramos em contacto com esses compostos, mesmo em quantidades mínimas, a tendência para o nosso organismo, que não os reconhece, é eliminá-los. “E isso normalmente traduz-se em doença”, não no dia-a-dia, ou porque aquela água em particular tivesse mais ou menos quantidade do composto, “mas porque o fomos acumulando até atingir um nível que o nosso organismo considera já tóxico. E depois reage” – reacções alérgicas, vómitos ou diarreias podem estar na lista.

Ecologia precária

Por outro lado, as tubagens da água da torneira – que nos aparece imediatamente no copo, por já estar nas canalizações – também podem ser fonte de problemas. Mas com os controlos da qualidade da água podemos dormir descansados. Há que fazer um equilíbrio de receios na relação entre um e outro consumo. É preciso separar as águas. “Não é por falta de qualidade que não bebemos água da torneira”, avança ainda Eduarda Pereira. Há quem se queixe, em determinadas regiões de um 'sabor a lixívia', mas na verdade é a adição de cloro que entra pelo paladar. O cloro garante “uma desinfecção bacteriológica sem problemas”.

O problema continua a não estar no tratamento, pelo menos em Portugal, país com o privilégio de ter muitas fontes naturais de água com qualidade. O que assusta os especialistas é outra questão ecológica. Com a subida do nível do mar e a destruição da costa nacional nos últimos anos, a água salgada infiltra-se nos aquíferos subterrâneos. Esse avanço para o interior pode pôr em causa a qualidade da água subterrânea. Por outro lado, explica ainda Eduarda Pereira, a utilização de fertilizantes para acelerar a produção agrícola – ou para produzir fruta de maior tamanho, por exemplo – também atinge os aquíferos subterrâneos. A água começa a estar como uma ilha, cercada de ameaças por todos os lados.

ricardo.nabais@sol.pt