Na língua dos cães não há dificuldade de compreensão

Morreu o maior dos que restavam entre os muitos que procuram a palavra definitiva, a palavra última que tudo explica. Herberto Helder marcou um tempo em que os pensadores, poetas e artífices foram reduzidos a uma expressão de mínimo denominador comum. Chegou-lhe a morte, não sei em que condições lhe terá batido à porta, se…

O grande paradoxo é que todos os mecanismos existem em nome de uma palavra: consumo. Sem o consumo não há crescimento, riqueza, prosperidade. A sociedade está então organizada sem um plano B porque tudo foi pensado em nome de um dogma que não se cumpriu – a inevitabilidade de que, com pausas por breves ciclos, haveria sempre crescimento económico. Estamos a desmoronar-nos porque não estávamos preparados para o dia em que, dependentes de comprar, faltasse quem comprasse. Está a melhorar, dizem-nos os números. Mas piorará. Aqui e lá fora. Talvez as futuras gerações possam inventar uma sociedade abundante do que é essencial. Uma sociedade próspera apenas no que precisa e frugal no que é ilusão de riqueza e bem-estar. 

Os livros de Herberto venderam-se também como tentativa de revolução contra o tempo. Não deu uma única entrevista, recusou o Prémio Pessoa e todos os outros que lhe quiseram atribuir, quis que as edições dos seus livros fossem limitadas. Isso é marketing, escreveram especialistas de certezas. Desconheço o que lhe ia na cabeça, mas sei desde miúdo (frequentava a mesma escola secundária que o Daniel Oliveira, seu filho) que Herberto tinha horror ao poder, aos salões, honraria e a todas as diplomacias e diplomatas. Gostava de estar no seu canto, que não o chateassem muito, que o deixassem estar. 

Quanto aos diplomatas deste mundo, estou como talvez ele estivesse. Por vezes não sei se representam um país ou um estilista. Se defendem a bandeira ou um nó de gravata perfeito. Se seduzem exportações ou se penteiam com o reflexo dos sapatos de marca italiana. Não sei se perderam a capacidade de se sacrificar ou ganharam o direito aos melhores cubanos e a distintas salas de fumo. Na verdade sei pouco de palácios. E de fatos com lenços na lapela. Esquecemo-nos deles, desse país à parte de todos os países. Cavalheiros de sorriso fácil, citação apropriada e o charme discreto da hipocrisia. 

Bons poliglotas, porventura mais preparados para a língua que se fala no outro lado. Também aí, Herberto, se procura a palavra definitiva? Encontrar-nos-emos com os que falam outros sons e com os bichos que descreveste algumas vezes?

Nesse aspecto, os cães estão em vantagem, sempre o estiveram. Se um da República Checa fala a mesma língua e entende perfeitamente um cão árabe ou um da Serra da Estrela, isso coloca-os numa posição de superioridade perante nós. É que o não-compreendermos o outro, se o outro nos diz o que não somos capazes de entender, limita-nos, mesmo que seja temporariamente, nas nossas qualidades e defeitos. Mas no mundo dos cães, independentemente do país onde estão, nada os afecta na sua regular compreensão do mundo. Se pensassem na morte, os cães não teriam de se preocupar com a língua que se fala no seu céu. 

Respostas que não são para hoje. Herberto já as sabe. Infelizmente partiu preocupado com um mundo que caminha para fora de pé. Novas ditaduras, delas estamos pouco livres. Novos ditadores em velhos palácios nas quatro paredes de sempre. Dentro de quatro paredes – de um palácio, convento ou biblioteca – podemos quase tudo: imaginar, temer, ambicionar, perverter, viajar sem a necessidade de o fazer, ter prazer, fechar negócios, especular, exercer o poder, matar, tudo. Mas fora delas; com a luz natural e a vida em movimento, os horizontes alargam-se e temos uma hipótese de nos darmos aos outros, de não enlouquecermos. Os que perderem o apetite de sair das suas paredes poderão ser sábios ou poderosos, mas acabarão gordos de si próprios, prenhes de coisa nenhuma, sozinhos. Todos os ditadores o perceberam no instante antes do fim. A nossa certeza é que voltará a acontecer, pena apenas o que acontece até aí. 

É como uma casa com jarras sem flores. Casas patéticas. É quase como criar um cão sem o ver correr, saltar, buscar. Numa casa/palácio/país, não pode haver meio-termo. O que há de vida deve tê-la sem qualquer reticência. As jarras devem ter plantas, os aquários peixes felizes e os cães corpos exercitados. Porque se isso não acontece, se no lugar da vida estiver a sua ausência ou uma espécie de morte disfarçada, a casa tornar-se-á um lugar onde envelhecemos para sempre. 

Torno a Herberto, o homem cujo último dia foi mais pequeno do que os outros, a história comum de todos, será também a minha e a sua. O que o distinguiu, o que distingue os que marcam o seu tempo, não foi a criatividade, a inteligência, a rapidez de raciocínio, a sensibilidade, a liderança ou qualquer outro atributo de maior ou menor peso. Não é possível interferir com o mundo sem algumas dessas qualidades, está claro – mas nenhuma delas garante por si a empreitada. Se o bastasse, milhões de entre nós teriam vislumbrado a escadaria do Olimpo. O que poucos têm é a capacidade de encontrar respostas sem a necessidade de perguntas, respostas antes das perguntas, respostas que preencham o mundo de um mundo que existia antes de ser pensado. A interrogação é o princípio e o fim da nossa maravilhosa condição, uma interrogação que, para uns poucos, já está incluída numa resposta que pressentem antes de ser pressentida. Como se estivesse guardada dentro de um cofre interior. Do seu cofre interior. Herberto Helder estava entre os que o fizeram. Descobriu a palavra despida do que imaginávamos ser a palavra.