As horas

Da internet para a rua, uma nova geração vai ocupar o palco. Já não era sem tempo.

não consigo prever a dimensão das manifestações deste sábado. desde logo, porque não têm termo de comparação. em portugal, elas são convocadas por partidos, sindicatos ou associações e nunca por quatro criaturas que um jantar tornou particularmente imaginativas. por outro lado, o hábito nas convocatórias é o do folheto de propaganda, o carro de som e, vá lá, o sms; por facebook é que já se tinha visto noutros cantos do planeta, mas não por cá. finalmente, não se sabe quantos vão estar porque as pessoas chegarão aos locais de concentração pelos seus próprios meios e não à pala de comboios e autocarros contratados para o efeito. assim, há muito não se fazia.

também não se sabe quem estará. a convocatória dirige-se a «nós, desempregados, quinhentoseuristas e outros mal remunerados, escravos disfarçados, subcontratados, contratados a prazo, falsos trabalhadores independentes, trabalhadores intermitentes, estagiários, bolseiros, trabalhadores-estudantes, estudantes, mães, pais e filhos de portugal». quando apresentei a ‘coisa’ em estrasburgo, tentei resumir: «gente que se endivida para estudar, que quase paga para trabalhar e que é obrigada a sobreviver com 500 euros». assim dito, é muita gente, talvez metade da força de trabalho deste país. a questão é que os quatro jovens incluíram também as mães e os pais. o convite não se dirige apenas à ‘geração à rasca’, mas a uma ‘nação à rasca’. se toda a gente estivesse atenta, não haveria avenida que chegasse.

a outra novidade desta manifestação é a de que, antes de ser, começou a acontecer. não me lembro de iniciativa cidadã que tenha deixado tanto lastro de comentário, análise e debate. há dois ou três anos, a palavra «precariedade» era um palavrão. agora, o «desemprecariado», realidade bem mais difícil de descodificar, entrou na agenda mediática. é verdade que esta mudança corria lentamente até que uma canção a popularizou num refrão que sintetiza mil vidas: «mundo parvo este, onde para ser escravo é preciso estudar».

eu não sei se as manifestações vão ser grandes ou pequenas. gostaria mesmo muito que fossem das maiores que a memória guarda. mas sei que há algo em gestação e que é independente dos números – este país está de novo a mudar, a entrar num período em que a resignação e o conformismo vão ceder o seu lugar à indignação. o que sucedeu no festival da canção com os homens da luta é igualmente sintomático do grau de exasperação a que as pessoas estão a chegar. uma cadeia de acontecimentos extraordinários está-se, lentamente, a formar. ela anuncia um acerto de primeira grandeza – o que faz coincidir as horas com o tempo. da internet para a rua, uma nova geração vai ocupar o palco. já não era sem tempo.