Basta de ser ‘bom aluno’

Remetermo-nos a ‘fazer o trabalho de casa’ não é apenas perigoso — pode ser fatal!

reconheço a dificuldade de elaborar um programa de governo dentro do espartilho do acordo com a troika e dada a fragilidade de que padece a economia nacional. disso consciente, estes breves e necessariamente ligeiros apontamentos visam menos comentar o programa do xix governo constitucional do que assinalar a enorme lacuna de que ele enferma ao deixar completamente em branco a agenda do governo no que respeita à união europeia.

no programa de governo, a ‘estratégia europeia’ resume-se a um parágrafo no capítulo sobre ‘política externa, desenvolvimento e defesa nacional’ onde, no contexto de um ministério dos negócios estrangeiros que inclui também a dimensão económica, e entre muitos outros objectivos, figura a referência a ‘uma política europeia competente e credível que, na situação nacional actual e num cenário de desafios comuns e de soberania partilhada, é o espaço de acção essencial’. na parte do texto em que se elencam as ‘medidas’, é referida a necessidade de ‘defender e restabelecer a credibilidade e a reputação de portugal no quadro europeu; assegurar a participação de portugal na linha da frente da construção europeia e procurar que os princípios da coesão e da solidariedade entre estados-membros sejam espelhados nas políticas comunitárias; contribuir para a implementação da estratégia europa 2020 e o aprofundamento da integração nas áreas do mercado interno, com destaque para o mercado da energia’.

ficamos por aqui, tanto quanto me foi possível detectar; e ter de respigar o texto à procura de referências, já de si é sintomático…

considero, e tenho-o escrito, que a relação de portugal com a união europeia padeceu, desde muito cedo, da lógica inquinada do ‘bom aluno’. as consequências desta postura têm sido muito mais graves do que possa parecer. na acepção portuguesa, o ‘bom aluno’ obedece; é bem comportado, não questiona a matéria que o professor resolve dar, limita-se a cumprir as metas que lhe impõem e recebe, em troca, ‘boas notas’; no caso vertente, recebemos fundos estruturais, os quais constituem quase a única dimensão pela qual medimos o sucesso da nossa relação com a europa. se a europa manda abater os barcos de pesca, nós abatemos; se a europa manda arrancar vinha, nós arrancamos; se a europa manda vender as golden-shares, nós vendemos; se a europa abre as portas às importações com dumping ambiental e social, nós lá temos de nos adaptar… em troca de tudo isto, cá recebemos os fundos estruturais com que fazemos infra-estruturas que já não temos a certeza de querer construir. eis, a traços necessariamente grossos, alguma da essência do nosso relacionamento tradicional com a união europeia.

mantermo-nos dentro desta lógica é hoje mais perigoso do que nunca. ou olhamos pelos nossos interesses e exploramos a escassa margem de manobra que ainda nos resta no projecto comum, ou os riscos gigantescos que estamos a correr não terão qualquer hipótese de se dissipar.

são inúmeros os temas em que a nossa capacidade de influência não é nula, desde que saibamos claramente o que queremos. só na área económica, e para além da revisão em curso de toda a legislação financeira, está em curso a revisão do pacto de estabilidade e crescimento e a criação de um novo instrumento (com sanções) para controlar os ‘desequilíbrios macroeconómicos’: nestes textos legais, em que cada palavra conta, o parlamento europeu é co-legislador com o conselho e dois dos seis relatores são portugueses.

perguntar-se-á: quais as posições que mais relevam para portugal? estando em debate o futuro do orçamento europeu e a possibilidade de o reforçar através de novas fontes de financiamento, nomeadamente de um imposto sobre as transacções financeiras, que objectivos temos? estando em discussão a emissão de obrigações europeias (project bonds) para financiar grandes projectos de relançamento económico, quais são os interesses nacionais nesta matéria? e, nesse quadro, deverá o financiamento destinar-se a redes de transporte, a redes de energia ou a projectos científicos? sendo óbvio que o problema ‘da grécia’ está longe de estar resolvido e que, entretanto, instrumentos complementares vão sendo estudados (desde o lançamento de euro-obrigações ao tipo de intervenção permitida ao novo mecanismo de estabilização monetária), que prioridade devem ser atribuídas, na agenda portuguesa, a estas iniciativas?

no actual momento, quando quase tudo o que acontece em portugal depende significativamente da união europeia, remetermo-nos a ‘fazer o trabalho de casa’ não é apenas perigoso – pode ser fatal!