Manadas

Nada é tão útil para reorganizar o pensamento como passar duas semanas a observar a natureza e com acesso limitado ao telemóvel e à internet. Mas o regresso torna-se deprimente, ao fazer-nos readquirir a consciência de que, em muitas matérias e, em particular, no que respeita à União Europeia, nada de essencial mudou e continuamos…

uma das imagens que retive destes dias fora da europa foi a de grandes manadas de zebras e gnus a atravessar uma estrada num tropel violento, para, poucos minutos a seguir, fazerem com igual convicção e alarido o trajecto exactamente oposto. não fora a literatura anglo-saxónica ter consagrado, a propósito dos mercados financeiros, a expressão herd behaviour (’comportamento de manada’, em termos literais) e nunca eu ousaria confessar e escrever – precisamente porque a ousadia se paga caro – que olhar essas zebras e gnus me fez pensar na europa.

mas não são só os operadores financeiros que reagem ‘em manada’. o mais grave é que o pensamento e a análise económica vão alinhando pelo mesmo diapasão: ou dizemos todos o mesmo e beneficiamos do conforto que a ‘manada’ nos garante ou a ousadia de discordar pode fazer-nos perecer espezinhados pelo tropel!

a opinião pública e publicada a propósito das agências de notação é apenas um pequeno exemplo deste mundo extraordinário em que vivemos. passámos anos a glorificar os mercados e as agências de notação que conseguiam atravessar a complexidade das empresas e a opacidade dos produtos financeiros para informar o cidadão comum do seu verdadeiro valor. e não constituía sequer problema o facto de serem os próprios ‘notados’ a pagar os serviços de notação e de esse ser apenas um entre múltiplos conflitos de interesses entre notadores e notados. as notas excelentes atribuídas, semanas antes de falirem, a empresas que, pelo seu carácter sistémico, estiveram no epicentro da crise do verão de 2007 (lehman brothers incluída), também não abalaram seriamente a reputação das agências…

a mesma união europeia (ue) que, através da política de concorrência, obriga qualquer empresa a ‘partir-se’ no caso de a sua quota de mercado poder pôr em causa a sã competição e que combate quaisquer práticas combinadas entre concorrentes, conviveu placidamente, no caso das agências de notação, com o facto de actuarem no mercado europeu quatro empresas que, em conjunto, dominam 90% do mercado mundial do respectivo sector; mais até do que conviver, reconheceu às notações a capacidade de produzirem valor efectivo em textos legais (como os relativos à qualidade do capital) ou em opções de política económica, mesmo estando em causa estados soberanos sobre os quais a ue (da comissão europeia ao eurostat ou ao banco central europeu) tem necessariamente mais informação do que qualquer outra entidade a nível mundial.

entretanto, e depois da atribuição da notação de ‘lixo’ à dívida soberana portuguesa, começou-se de repente a correr em sentido oposto ao precedente, como se os critérios para a notação no contexto do governo passos coelho fossem diferentes dos utilizados durante o governo sócrates, para o caso da grécia e para tantos outros; passou-se então a repetir, em portugal e na europa, que o importante era criar uma ‘agência europeia de notação’ para resolver o problema. peço desculpa por perguntar: mas o que é uma ‘agência europeia de notação’? uma agência pública que emite ratings que o mercado irá ignorar ao interpretá-los como ‘politicamente manipulados’? uma agência de capitais privados europeus? e ainda: porque teriam os accionistas ‘europeus’ dessa nova agência menos ambição do que os das agências existentes (alguns dos quais até já são ‘europeus’)? por amor ao euro?

não seria melhor ‘partir o mercado’ das agências de notação, permitindo a entrada de novos operadores e assim quebrando o oligopólio e blindar urgentemente a legislação e as práticas europeias em relação às suas notações, antes de começarmos todos a correr em manada atrás de mais um consenso sem sentido?