‘Algumas das maiores pinturas da História da Arte são naturezas mortas’

Entrevista a Neil Cox, comissário científico da exposição sobre os séculos XIX e XX que inaugura esta semana na Gulbenkian com obras gigantes.

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que história quis contar nesta exposição? se é que quis contar alguma…
a fundação gulbenkian pediu-me uma exposição sobre a natureza-morta dos séculos xix e xx, até 1955. havendo uma limite final, a primeira decisão que tive que tomar foi qual a data que marcaria o começo da exposição.

e sente-se confortável com a data instituída pela fundação?
era arbitrária ao princípio, para mim. mas, de facto, os anos 50 são uma boa altura para terminar. porque as maiores transições dão-se nos anos 50 e 60 – com a chegada da sociedade de consumo, o pós-guerra e as mudanças tecnológicas dos anos 60 – em que pode dizer-se que se entra numa nova prática artística, com a pop art, o conceptualismo, o minimalismo, todo este tipo de práticas em que os artistas se afastam dos géneros tradicionais. isto apesar de, ao mesmo tempo, muitas das mudanças dos anos 60 estarem já em potência muito antes e de muitas coisas radicais se terem passado na primeira metade do século xx. é verdade que depois dos anos 50 deixa de fazer sentido falar de natureza-morta. perde completamente o seu significado.

existe alguma forma de natureza-morta hoje em dia?
é óbvio que ainda há artistas a pintar naturezas-mortas. há pessoas que, por exemplo, fazem fotografias que são naturezas-mortas, mas já não é algo de vital na arte contemporânea. de maneira nenhuma… a criação de objectos, ou o uso de objectos, é uma coisa muito importante na arte contemporânea. nós temos objectos na exposição que apontam em direcção ao futuro e a um tipo de prática artística mais complexa.

está a falar de marcel duchamp…
sim, o porta-garrafas do duchamp, as peças de tatlin e o telefone de salvador dalí. todos eles apontam para o tipo de práticas actuais.

mencionou a dificuldade de encontrar uma data de partida para a exposição.
cronologicamente, a última pintura da última exposição era um goya, dos anos 1820, talvez. decidi que não queria pegar logo aí. queria marcar a modernidade de alguma maneira. e, então, o começo conceptual da exposição é a invenção da fotografia, em 1840. escolhi esta data para tentar dar uma explicação causal de por que os artistas modernos pintam assim. a ideia de similitude realística ou naturalista da representação como objectivo da arte é superada pelo advento da fotografia. é uma ideia simples, obviamente a questão é um pouco mais complicada que isso. mas sinto que é um pouco verdade que a invenção da fotografia muda a natureza da representação visual e coloca aos artistas um problema: pensar o que a representação visual pode ser.

o significado da natureza-morta é o mesmo nos pintores holandeses e nos modernos? há diferenças ideológicas?
certamente, se pensarmos nos holandeses, na clássica natureza-morta do século xvii. e para quem viu a primeira exposição, com obras fantásticas, recordar-se-á. essas obras evidenciavam muito a perícia do artista e o puro prazer da contemplação, numa primeira abordagem, mas estavam também carregadas de simbolismo. não há muitas pinturas nesta exposição que tenham algo a ver com um programa simbólico. não é possível descodificá-las da maneira que se pode descodificar muitas das naturezas-mortas de séculos anteriores. o sentido religioso, como subtexto, nas vanitas [pinturas com caveiras, significando a transitoriedade da vida] é óbvio. são também evidentes as alegorias sociais que estão em jogo em muitas destas representações. na modernidade estas pinturas são muito mais sobre pintura, sobre a questão da representação e são também muito mais sobre o artista. sobre o artista como artista, sobre a expressão da sua experiência do mundo.

a questão dos impressionistas…
exactamente. esse foi o primeiro grande momento dessa mudança. a primeira exposição dos impressionistas, em 1874.

a história que quer contar é então a história dessa mudança na pintura.
sim, mas não de uma forma linear. esta exposição não é para ser seguida como uma sequência na qual é preciso aceitar as associações propostas como a única maneira de compreender a história da arte moderna. e tentámos mantê-la aberta de forma a ser possível fazer várias conexões. de uma forma muito básica a história é: a fotografia é inventada e isso cria um problema sobre a representação visual e, ao mesmo tempo, vive-se um momento de transformação tecnológica maciça, em várias frentes: o comboio a vapor, o telefone, o carro. e isso muda a nossa noção de espaço e tempo, ao mesmo tempo que a noção do próprio indivíduo muda radicalmente.

como é isso notório dentro destas paredes?
no início da exposição está um quadro de fantin-latour que pertence ao museu gulbenkian. aquela pintura está muito próxima da natureza-morta holandesa do século xvii. mas na verdade só há um intervalo de 20 anos entre esse quadro e ramos de castanheiro em flor, de van gogh. no quadro de fantin-latour, uma bela jarra de flores, a presença do artista é muito subtil. mas o quadro de van gogh está cheio de marcas que nos dizem que este pintor fez este quadro. todas estas estranhas formas, marcas de pinceladas e cores vívidas e esta confusão dinâmica mostram quão afastados estamos desta noção hipercontida da subjectividade do artista. na natureza-morta do século xix, o artista é muito mais central, está, por assim dizer, dentro do quadro.

e há ainda o surrealismo.
se formos ao que dalí chamou de ‘fotografias de sonhos pintadas à mão’, aqui onde começámos a falar de inconsciente passamos a falar do conceito complexo do que é uma pessoa. não só de uma pessoa moral, que faz escolhas, cujo comportamento é governado pela razão, mas a ideia de um indivíduo cuja razão está em conflito com outras partes da mente. aqui há uma tentativa de fazer arte que mostra essa subjectividade fragmentada, que é inteiramente moderna.

por que achou que esta pintura em particular, a sensação de velocidade, tinha algo a ver com uma natureza-morta ?
todo este trabalho está nos limites da tradição. quando dalí faz alguma coisa que terá algo a ver com uma natureza-morta será sempre mais como uma paisagem. aqui temos um objecto que é um sapato, que tem um relógio, e outro sapato em relevo, e há uma estranho objecto prateado em forma de pérola. não há nada no trabalho de dalí que seja directamente uma natureza-morta, num sentido clássico de coisas da natureza sobre uma mesa. no surrealismo, em dalí, serão objectos numa paisagem de sonhos. muito dos trabalhos tardios apresentados nesta exposição estão nos limites do que se pode considerar natureza-morta. estão onde a categoria se fractura. e a principal maneira em que rompe com essa linha de tradição – se a natureza morta tradicional é a representação de objectos numa pintura – o que acontece no século xx é que é o objecto que sai da pintura e entra no mundo. e chega-se aqui. e, nesse sentido, é um fim da história, o objecto a sair da pintura. pode-se fazer uma narrativa na exposição e chegar a este ponto.

e chegamos a duchamp, que é esse objecto que existe no mundo, sem moldura.
na verdade é cronologicamente o último objecto da exposição. é uma réplica tardia, feita em 1964, assinada por duchamp e confirmada como autêntica. na verdade é uma obra produzida já no mundo complexo da pop art. duchamp tornou-se muito mais famoso nos anos 60 e, de certa forma, pertence mais a este mundo do que àquele em que criou os primeiros ready-mades. e mostrado também no contexto do surrealismo faz outro tipo de sentido. e é importante isto, porque esta história aparentemente cronológica não é nada linear.

a ideia de uma exposição de naturezas-mortas poderia ser monótona?
a ideia é ser um bocadinho desafiante e surpreender as pessoas. porque embora tenha deixado de ser central na arte dos nossos dias, muitos artistas que foram importantíssimos para a história da arte trabalharam o género. algumas das maiores pinturas da história de arte são naturezas-mortas. morandi fez uma carreira disso e grande parte do trabalho de paul cézanne, um dos maiores e mais influentes artistas do seu tempo, são puras naturezas-mortas. uma das três pinturas de cézanne que aqui estão, natureza morta com maçãs, de 1878, é uma pintura muito importante por causa da recepção que teve em inglaterra. este quadro foi comprado pelo célebre economista john maynard keynes, num leilão em paris. quando ele a levou para londres, deixou-a no caminho de acesso a casa. nessa altura, duncan grant, um pintor inglês, vivia com ele. keynes chegou a casa e disse-lhe: ‘deixei um cézanne lá fora’. duncan correu até ao quadro que seria, durante muito tempo, objecto de discussões intermináveis. o crítico inglês roger fry escreveu sobre isso. e este pequeno quadrinho com apenas sete maçãs foi uma fonte de inspiração inesgotável para as tentativas de criar arte moderna na grã-bretanha. deixou um enorme legado. e é maravilhoso, também.

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