Ainda haverá milagres?

Poderá dizer-se que, por um lado, o ‘motor’ alemão se reforçou no curto prazo mas, por outro lado, ele foi deixando de reconhecer o mercado interno e a Zona Euro.

no momento em que escrevo, ainda decorre a cimeira de chefes de estado e de governo da zona euro, de cujos resultados depende, tal como dramática e sucessivamente anunciado, ‘a vida ou a morte do euro’.

é mais uma, na via-sacra de reuniões e decisões em que, de negação em negação, a união europeia (ue) sempre tem acabado por reagir, tardia, dolorosa e penosamente à inevitabilidade dos factos. mas, enquanto em tempos passados a europa foi encontrando em cada crise razões para se reforçar, desta vez é altamente improvável que assim aconteça.

o que mudou? quando a crise terminar – terminará? – estaremos em melhores condições para colocar em perspectiva as causas e os contextos destes anos difíceis; agora, e ainda em cima dos acontecimentos, podemos limitar-nos a focar alguns elementos que desde já sobressaem.

um dos aspectos mais óbvios releva da enorme dificuldade com que a ue – dotada de um mercado interno que lhe alimentava o essencial do crescimento – transitou de um papel de liderança (embora partilhada) da economia mundial para uma posição de parceira de um mundo globalizado estimulador de estratégias individuais e nacionais susceptíveis de secundarizar o interesse no mercado interno e no próprio projecto de integração europeu. a desregulação, a criatividade e a rentabilidade do sector financeiro face à economia ‘real’, bem como as oportunidades abertas pelos mercados emergentes, são algumas das manifestações mais evidentes desta nova realidade.

internamente, a reunificação alemã, seguida de um alargamento de consequências económica e institucionalmente complexas (mesmo que, talvez, politicamente inevitável) abalou estruturalmente a união. com uma quase inexistente coordenação fiscal interna e paraísos fiscais operando livremente, a margem de autonomia dos parceiros menos fortes para controlarem os seus próprios destinos foi necessariamente ficando cada vez mais contida. ademais, à diversidade interna crescente entre os 17 membros que partilham o euro, adicionam-se hoje os membros da ue que não integram a zona monetária, alguns deles (reino unido, suécia e dinamarca) detendo interesses e influências dominantes na economia e na produção legislativa e outros (novos aderentes da europa central e oriental) explorando o melhor possível as oportunidades da integração.

combinando este conjunto de forças, poderá dizer-se que, por um lado, o ‘motor’ alemão se reforçou no curto prazo, mas que, por outro lado, ele foi deixando de reconhecer o mercado interno e a zona euro como o seu espaço de referência dominante. ao que acresce a componente institucional, na medida em que as alterações introduzidas pelo tratado de lisboa não evitaram que o papel das instituições ‘comunitárias’ (em particular da comissão) quase desaparecesse, substituído pelo poder fáctico da alemanha (a frança cinge-se a ir tentando desesperadamente acompanhar a evolução dos acontecimentos).

a crise de 2008 veio somente evidenciar as brechas que já existiam. neste sentido, a ideologia dominantemente liberal e as pressões de política nacional que determinam a agenda dos líderes políticos de cada país foram transformando a ue num gigante errático, permanentemente equilibrado na borda do abismo. propostas articuladas de reforço do orçamento europeu (nomeadamente através de uma taxa sobre transacções financeiras), de protecção da dívida dos estados (através da emissão de empréstimos comuns, as euro-obrigações) ou de constituição de uma agenda séria para o crescimento e o emprego não foram entrando nas prioridades europeias à medida e ao ritmo de uma estratégia, mas sim em reacção a uma realidade que, ao deteriorar-se, as ia tornando inevitáveis.

assim é que, sem a presença de visão e vontade política, o problema de 2009 associado à grécia (país de peso muito diminuto na economia europeia) surge transformado, dois anos depois, num problema de sobrevivência da zona euro e da própria europa. dois ciclos viciosos perigosíssimos estão a funcionar: o primeiro, entre a dívida soberana (que os bancos devem comprar, embora arriscando-se a não serem reembolsados, o que constitui uma inovação fatal na zona euro) e um sistema bancário cuja fragilidade (em parte decorrente da posse dessa dívida soberana) deverá ser atalhada (recapitalização), por meios directos ou indirectos, pelos mesmos estados (leia-se, pelos contribuintes); o segundo, por via dos efeitos devastadores das receitas restritivas impostas ou adoptadas e que, sem qualquer elemento que estimule o crescimento e o emprego, se arriscam não só a prolongar, alargar e aprofundar a crise económica e social mas ainda a transformá-la numa séria crise política.

quem sabe se ocorrerá um novo milagre em mais uma cimeira? só que, se ele ocorrer, importará não deixar de avaliar devidamente o respectivo preço…