Marco Delgado: Problema com a SIC ‘parou a minha vida durante dois anos’

Já tinha casa no Brasil mas foi forçado a desistir do sonho de entrar numa novela da Globo devido. Na primeira parte de uma grande entrevista originalmente publicada na TABU, o actor Marco Delgado fala da infância, da passagem por África e da ‘guerra’ com o pai na altura de escolher a carreira a seguir.

O seu nome foi falado para participar numa novela da Globo, mas acabou por não ir para o Brasil. O que aconteceu?

O convite para a novela Boogie Oogie, da Globo, surgiu da parte do Rui Vilhena. Mas quando a SIC soube que eu tinha sido convidado, não aceitou o meu nome.

A SIC não aceitou?

Preferiam que tivesse sido escolhida outra pessoa, mas como não foi essa a vontade nem do Rui nem da Globo, a personagem deixou de existir. A minha vida ficou parada durante dois anos porque esperava ir para o Brasil fazer esse trabalho.

Por que acha que isso aconteceu?

Não sei. Acho que provavelmente estava mais conotado com a TVI. Mas tinha acabado o contrato de exclusividade e fui fazer uma participação na novela Sol de Inverno, na SIC, justamente para fazer a ponte da SIC para a Globo. Como a novela brasileira se atrasou, tentei que a minha participação na novela da SIC se prolongasse, mas foi impossível por que a minha personagem estava pensada para cinco ou seis meses de gravações. Sendo assim, aceitei outro convite da TVI. Foi depois disso que a SIC chumbou o meu nome.

Qual é a sua relação com a SIC?

A minha relação com a SIC, neste momento, é óptima. Ainda agora fui convidado para fazer um trabalho, mas optei por fazer uma nova novela da TVI. Fiquei muito sentido, muito revoltado porque não esperava que a SIC me tratasse assim. Já tinha o meu contrato financeiramente resolvido com a Globo, já tinha a casa resolvida no Leblon – não tinha assinado o contrato da casa por acaso –, já tinha gasto dinheiro em toda a documentação que me tinham pedido, como o visto para trabalhar lá um ano, já tinha negociado o chauffeur para me levar para o estúdio, quando soube que não vou fazer a novela porque não havia vontade da SIC. Por que me fizeram isto a mim? Não sei. Não sou uma pessoa conflituosa, acho que são invejas… Não encontro uma explicação…

Nasceu a 18 de Outubro de 1972, em Moçambique. O que recorda da infância?

Nasci na Beira, no Norte do país. As primeiras recordações são de grande felicidade. Morávamos numa casa muito grande, eu, os meus irmãos e os meus pais, junto ao aeroporto da Beira. A minha mãe trabalhava na TAP e o meu pai era controlador de tráfego aéreo. Tenho memórias de um grande pombal que tínhamos em casa, de um jardim grande… E lembro-me do calor e da terra, de andar descalço, das cores vivas e quentes de África. Mas as memórias são muito poucas, foram três anos. Eu sou de 1972 e nós, em 1976, fomos recambiados para Portugal. A partir daí, tenho memórias muito contraditórias e conflituosas. Sei que viemos directamente para Lisboa.

Que imagem é mais forte na mudança?

África marcou a minha personalidade. A sensação de grandeza, de querer conquistar algo de grande, a sensação de bons valores, de pessoas justas. Acho que as pessoas em África são muito justas e humanas…

Como começa a ter essa imagem aos três anos? Isso não é um cliché?

Não sei como explicar. É uma sensação que toda a gente que nasceu em África tem. Talvez seja uma coisa muito subjectiva e intuitiva, mas há uma relação muito forte com o meio ambiente.

Em que medida isso interferiu na sua infância? Tem ideia desse contraste?

O maior contraste que senti foi justamente a dimensão, tudo o que havia neste país era muito mais pequeno, confuso e difícil de entender. Era tudo muito cinzento. Fez-me muita confusão, depois aprendi a lidar com isso.

Sentiu alguma forma de racismo em miúdo? De dizerem que era retornado?

Nas pequenas coisas, em comentários, olhares, algumas mentiras… De sermos portugueses de segunda categoria, retornados, isso sentia-se na escola. A nível familiar, de alguma forma, éramos tidos como menos importantes, apesar de ter boas memórias de toda a juventude que passei com os meus avós em Vergão, uma aldeia muito perto de Proença-a-Nova, Sertã, na Beira Baixa.

Nunca mais voltou a África?

Voltei com um espectáculo de teatro com o Raul Solnado, o Avarento, de Molière. Fomos em tournée a Maputo, não tive oportunidade de ir à Beira. E voltei outra vez a África, de férias, fui para o Norte. Gosto imenso de África, sinto uma grande paixão cada vez que regresso. Aquilo é tão forte e mexe tanto connosco! Mexe com uma coisa que acho fundamental: as tuas prioridades. De repente, percebes que para seres feliz não precisas de muita coisa. Só precisas das pessoas certas ao teu lado. Aqui é preciso carro, casa e essas coisas, mas lá redimensionas e reestruturas os teus valores.

Além do irmão mais velho, tem um gémeo. Há seguramente muitas histórias curiosas…

É uma relação muito especial, única. Não há qualquer tipo de amor superior ao que tenho com o meu irmão Sérgio. É um relacionamento muito profundo, muito especial e muito pouco verbalizado, por incrível que pareça. É um amor para a vida.

Os irmãos gémeos sentem mesmo as coisas um do outro ou é um mito urbano?

Quando um está doente, o outro sente, o que acontece a mim acontece ao meu irmão passado um tempo, e vice-versa.

Na escola os professores confundiam-vos com facilidade?

Sim, completamente. Os meus pais eram as únicas pessoas que não nos confundiam regularmente, mas acontecia de vez em quando. Os professores, os amigos, as namoradas… Mais tarde, os namorados. Ainda hoje nos confundem.

Isso deu azo a episódios engraçados?

Lembro-me uma vez de uma namorada minha ter beijado o meu irmão na boca porque ele lhe abriu a porta de casa. Ela não se apercebeu e foi directa para cima dele. Também trocámos várias vezes de testes na escola, aquela coisa de fazer os testes um pelo outro, até porque o meu irmão era melhor a matemática e eu era melhor a letras. Nunca ninguém se apercebeu, o que era fantástico. A partir do 10.º ano cada um escolheu uma área completamente diferente e acabou a brincadeira.

A rebeldia que viveram estava relacionada com o divórcio dos pais?

Sim, o divórcio abalou estruturalmente tudo aquilo que tinha como certo. A minha mãe saiu de casa, o meu pai ficou com os três filhos. O meu irmão mais velho tinha 18 anos e foi estudar para o estrangeiro, foi tirar o brevet para a África do Sul. A violência psicológica foi terrível. Éramos usados como armas de arremesso. Só me lembro de chorar e de ficar muito aflito, sem saber o que fazer.

Na escola ‘metiam-se’ consigo?

Senti grande falatório por a minha mãe ter saído de casa e não o meu pai. Senti algumas conversas e olhares, e algumas pessoas menos bem formadas chamaram nomes à minha mãe, ao meu pai, a nós… Tudo mudou quando fizemos 18 anos. Comecei o 12.º, entrei nuns cursos de teatro, e aí talvez tenha começado a minha independência enquanto ser humano.

Como foi viver com o seu pai nessa altura de adolescência?

Tinha muitas saudades da minha mãe, foi um grande esforço da parte do meu pai, que tem todo o mérito por ter ficado com três homens, a fazer de pai, de mãe e de tudo. Foi a altura em que experimentei as primeiras drogas. Tive alguns problemas, mas não de toxicodependência. Uma amiga que fumava charros foi dizer à professora da escola que nós éramos dealers. O meu pai foi chamado e lembro-me perfeitamente de nos sentar aos dois e de nos perguntar: ‘Até que ponto esta afirmação – Vocês são os maiores dealers de haxixe da escola – é verdadeira?’. Desatámo-nos a rir. O meu pai é um herói, é alguém por quem tenho uma estima e uma consideração enorme. Formou-me enquanto homem, dos 12 aos 18. Ele tem um grande sentido de justiça, de honestidade e frontalidade. É muito sincero e directo. Da mesma forma que tenho uma enorme admiração pela minha mãe.

Como se dá o click para o teatro?

Mais tarde. Nunca tive grande vontade de ser actor.

Mas não via filmes, teatro, cinema?

Via muito pouco. Via desenhos animados. Lia muito, mas não queria nada ser actor. Só sei que tinha de estar ligado de alguma forma às artes performativas – o que eu não queria era estar sentado num escritório, das 8h às 18h.

Discutia o futuro com o seu irmão?

Não. O meu irmão fez o 3.º ano de Gestão, não queria nada dessas coisas… Depois desistiu e o meu pai ficou furioso com ele. Foi estudar para o Hot Club Jazz e fez formação em música e, mais tarde, veio a parte de DJ.

Qual foi a guerra com o seu pai?

Apesar de eu mais tarde concordar, o meu pai quis sempre que eu tirasse um curso na faculdade ligado às Letras. Eu disse que não queria. E fui fazer o 1.º curso de teatro no Instituto de Investigação e Formação Teatral. Era um curso de seis meses e aí começa um período da minha vida de experimentação de tudo e mais alguma coisa. Foi um período revolucionário em que conheci uma das pessoas mais importantes ao nível da minha formação enquanto actor, uma polaca que encenou e preparou-nos o projecto de final de curso. Depois disso formou-nos durante dois anos no Instituto Franco-Português – o marido dela trabalhava lá. Ela ensinava-nos a ir ao fundo de nós buscar os sentimentos e a verdade. Ela não queria saber da construção de personagens por fora, o que lhe interessava eram as nossas vivências. Tive com ela momentos fortíssimos, quase de psicanálise, de ir ao fundo da minha personalidade e do que sinto. Tivemos aulas de grande intensidade emocional. De gritos, de choro, de extravasar todo o tipo de emoções. No fundo, os cursos também são para isso, para falhar, para experimentar, para gritar, rir, chorar. Ela tinha uma grande paixão por mim, não correspondida, o que é curioso. Era um amor platónico e ultrapassou um bocadinho a relação aluno/professor, foi mais do que isso. Fizemos três espectáculos com ela, dois semiprofissionais. Vivemos experiências únicas que vou guardar para o resto da vida. Aprendi qual é o papel do actor.

rita.porto@sol.pt e vitor.rainho@sol.pt 

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