O pequeno mundo de Cavaco

No seu último discurso do 10 de Junho, Cavaco Silva deixou cair a sua velha exigência do ‘consenso’ – ou a formação de um governo maioritário depois das próximas legislativas, hipótese ainda muito improvável segundo as sondagens – e, para não perder a face, refugiou-se no credo que melhor conhece: o de contabilista.

Agora, seja qual for o Governo que aí vier, terá de obedecer a quatro regras essenciais: respeitar o equilíbrio das contas públicas e a sustentabilidade da dívida; manter o equilíbrio das contas externas e o controlo do endividamento com o exterior; garantir a competitividade da economia portuguesa; e, finalmente, assegurar um nível de carga fiscal em linha com os principais concorrentes.

Desconhecem-se as artes mágicas que permitirão concretizar estas regras de ouro. Mas, embevecido pelas opiniões positivas que tem ouvido nos areópagos internacionais sobre o desempenho económico português – deixando subentendido o exemplo negativo da Grécia -, Cavaco acredita que vivemos horas de “optimismo e esperança”. E avisa para não contarem com ele “para semear o desânimo e o pessimismo quanto ao futuro do nosso país. Deixo isso aos profissionais da descrença e aos profetas do miserabilismo”.

Para trás ficaram, segundo parece definitivamente, os tempos em que Cavaco alertava contra a “espiral recessiva”, quando “foi necessário dar voz aos que não tinham voz, aos desempregados, aos excluídos, aos reformados e pensionistas”.

A terrível 'espiral recessiva' não passou, afinal, de um pesadelo a que “conseguimos pôr cobro”, com a ajuda e compreensão dos nossos credores. Aparentemente, os tais que não tinham voz acabaram por recuperá-la e, por  essa  via  miraculosa,  os  desempregados, excluídos, reformados e pensionistas desapareceram das grandes preocupações presidenciais.

Se forem cumpridos os quatro principais objectivos enunciados por Cavaco, então só nos resta singrar – seja qual for a orientação política e o formato, maioritário ou minoritário, do próximo Governo – na rota do optimismo e da prosperidade.

Cavaco precisa de fabricar, a todo o custo, um happy end para o seu último mandato presidencial e, assim, julga ele, poder entrar na História, ultrapassando a baixa popularidade que hoje regista. Ora, para consegui-lo só lhe restou associar-se ao coro propagandístico da campanha do Governo, embora cuidando de não o referir uma única vez – é o que aconselham os manuais da dissimulação política – no seu derradeiro discurso do dia de Portugal. O pequeno mundo de Cavaco está reduzido a estas precárias ilusões.

O problema é que para cumprir os tais objectivos de sã governação que o professor lega em testamento antecipado, desvalorizando a crise social e económica em que o país continua a viver, não bastam a aplicação escolar ou a mística de 'bom aluno' do próximo Executivo.

O equilíbrio das contas, a sustentabilidade da dúvida, a competitividade da economia e o nível da carga fiscal mantêm-se decisivamente condicionados por factores exógenos – ou seja, europeus. Desde logo, os riscos que a crise grega faz correr à Europa não nos deixarão imunes às suas consequências. É apenas um exemplo, mas chega para se perceber que não vivemos no pequeno mundo ideal do professor Cavaco.

Para lançar as fundações de uma sociedade menos desigual, mais próspera e mais competitiva, é preciso restituir aos portugueses o que eles foram perdendo – e não estão em vias de recuperar, como mostram os indicadores estruturais do desemprego e da emigração – ao longo destes anos de crise que minaram a confiança do país.

Não existem milagrosas receitas contabilísticas – por maior sensatez que pretendam exibir – para reconverter este Portugal empobrecido e acabrunhado pela austeridade num outro país cujas potencialidades sejam canalizadas para uma estratégia de desenvolvimento e emancipação. Acrescente-se: uma emancipação tão ampla quanto possível das dependências externas que se têm vindo a agravar, com privatizações ruinosas ou destrutivas do que resta da nossa soberania.

Não está apenas nas nossas mãos resolver a quadratura do círculo em que se converteu a Europa, mas cabe-nos, pelo menos, combater por alternativas políticas que impeçam essa Europa de ficar refém de imbróglios absurdos como acontece com a Grécia.

O dia D não aconteceu, afinal, a 5 de Junho, como antecipei na última crónica, mas a prolongada incapacidade para evitar um sismo de proporções incalculáveis a nível europeu – e até global – mostra também como as regras sábias do professor Cavaco estão desfasadas de uma realidade que nos ultrapassa.