A grande opção estratégica do Portugal democrático: O legado de José Medeiros Ferreira

Não sendo especialista nestas matérias, decidi corresponder ao amável convite de “O Sol” e do seu director executivo Luis Osório baseando-me em grande parte nas próprias palavras de José Medeiros Ferreira.

Em Março de 1977, a República Portuguesa, ao formalizar o pedido de adesão à Comunidade Económica Europeia, fazia a grande opção estratégica do regime democrático. Essa decisão, contrariamente ao que hoje parece, não foi óbvia nem consensual: “Travou-se então uma luta surda sobre as grandes opções da política externa em Portugal. Apresentou-se a ligação aos países do Leste Europeu como uma alternativa viável para a cooperação económica e as trocas comerciais, caso a revolução interna fosse de molde a reduzir os laços com o mundo ocidental. Surgiu depois a tese das relações privilegiadas com o chamado Terceiro Mundo, nomeadamente com os países saídos da descolonização, opção que não deixava de representar uma autêntica metamorfose das teses africanistas e contrárias à integração europeia defendidas pelo regime salazarista. Assim, não será demais acentuar que a opção europeia, decidida logo no início do regime constitucional, em 1976, representou um corte com as políticas avulsas que vinham do passado.”

Para José Medeiros Ferrreira, Ministro dos Negócios Estrangeiros do 1º Governo Constitucional presidido por Mário Soares, tratava-se de uma opção conscientemente meditada: “A partir duma certa altura, nos meados dos anos 60, eu comecei a dar-me ao trabalho, dentro daquele estilo megalómano que me caracterizava na juventude, de dizer: Bem, Portugal mais tarde ou mais cedo vai descolonizar (que era uma coisa que na altura não se aceitava) e, portanto, vamos ver o que aconteceu aos outros países que tiveram de se desembaraçar dos seus impérios…”

Estuda a descolonização iniciada pela Grã Bretanha logo após a II Guerra Mundial; os dois momentos de descolonização da França; a desagregação do império otomano e o desenvolvimento e modernização da Turquia, entre outros.

JMF amadurece pois longamente essa ideia, contrária, à época, não só à política externa da ditadura salazarista e depois marcelista, não só às teses do PCP, mas também ao que defendiam os seus amigos de esquerda independente. Escreve sobre o assunto, entrando mesmo em polémicas como a que o opôs a João Martins Pereira nas páginas do Comércio do Funchal (um pequeno jornal insular transformado, graças à perícia de José Manuel Barroso e Vicente Jorge Silva, num importante órgão da imprensa onde a Oposição democrática se podia exprimir) e anuncia essa opção na sua conhecida 'tese de Aveiro'.

O 25 de Abril permite-lhe regressar a Portugal no fim do Verão de 1974 “com as ideias arrumadas sobre o projecto político que pretendia defender. Não me iludi com os radicalismos revolucionários nem me entusiasmei com os que queriam 'gelar' o mais depressa possível as consequências da queda, por ruptura, da ditadura. Tinha uma ideia aberta sobre a sociedade portuguesa, se bem que realista. Sempre me senti um vanguardista 'iluminado…'“

Opção longamente amadurecida portanto, mas decisão rápida na escolha do momento do pedido de adesão, na sua forma – plena – e na sua execução: “Entre a elaboração da tese enviada para o Congresso de Aveiro em 1973 e a assunção de responsabilidades governamentais entre Setembro de 1975 e Outubro de 1977, consolidei essa 'opção estratégica' que foi tomada e executada rapidamente e com êxito nos primeiros seis meses de vigência do I Governo Constitucional” .

Para JMF a adesão de Portugal à Europa Comunitária visava acima de tudo garantir a democracia em Portugal – mas também estimular o seu desenvolvimento: “Em primeiro lugar, enquanto para outros países fundadores da CE, talvez o principal objectivo tivesse sido a paz, para Portugal foi a liberdade e a democracia. Mas também queríamos participar num dos pólos mais avançados da civilização mundial e para nós foi uma garantia de modernização, competitividade e inovação e, desse ponto de vista, uma opção estratégica fundamental. Apesar dos problemas que são reais e que não devem ser escamoteados – há de facto uma situação difícil – em grande parte a nossa modernização deve-se ainda hoje a essa opção” .

Foi uma opção assente em pressupostos que JMF teorizou e formalizou logo à época:

– o do alargamento da CEE, o que na altura estava longe de adquirido;

– o de que a Espanha viria por entrar na CEE;

– o de que as ex-colónias portuguesas acabariam por fazer parte da Convenção de Lomé, ou seja, dum grande espaço de desenvolvimento entre o Norte e o Sul – problemática que nos anos 70 era de grande actualidade – o que se confirmaria mas na altura era muito controverso.

– o de que à rapidez do pedido de adesão se seguiria um pausado período negocial.

Também esse processo não foi isento de resistências e dificuldades: “Aquilo que a décadas de distância pareceria uma inevitabilidade e um desiderato fácil de concluir, implicou dificuldades de monta, ultrapassadas em grande medida pela determinação e coragem do I Governo Constitucional”, segundo Eduardo Paz Ferreira.

José Medeiros Ferreira, então o mais jovem Ministro dos Negócios Estrangeiros do mundo, descreve minuciosamente em várias publicações os passos dados, desde a entrada no Conselho da Europa em Setembro de 1976 à recusa de modalidades intermédias que nos viriam a ser oferecidas (reafirmando, no Conselho de Ministros do Conselho da Europa, em Janeiro de 77, que Portugal só aceitaria a adesão plena), às sondagens diplomáticas e às viagens com o Primeiro Ministro às capitais dos Nove, ao Papa e a Bruxelas em Fevereiro e Março de 1977 numa ordem cuidadosamente planeada: começar pelos Estados favoráveis à nossa entrada (Reino Unido e República Federal Alemã) para depois, fortalecidos com este apoio, enfrentar as resistências da Holanda e da França. A resposta foi estrondosamente positiva e rápida.

Teresa Gouveia, na Conferência de homenagem a José Medeiros Ferreira concluía: “Quando 25 anos depois de JMF ser MNE, aconteceu que exerci as mesmas funções. (…) a política fixada por JMF tinha, de facto, passado a ser a política externa da democracia portuguesa e é esse o seu legado e aquilo que o torna único entre os MNEs do Portugal do pós-25 de Abril. JMF terminou a sua conferência sobre Mário Soares com uma pergunta: seria irreversível a política europeia por este lançada? Hoje, 36 anos volvidos sobre os acontecimentos, a resposta é inequívoca: JMF tornou-a irreversível.”

Para o bem e para o mal, JMF sentiu-se sempre especialmente responsável, não pelos termos da adesão, claro está, mas pela concepção e organização do pedido de adesão: “Por ter sido o Ministro dos Negócios Estrangeiros que organizou a operação diplomática bem sucedida que culminou com a aceitação da adesão de Portugal à Comunidade Europeia, e por ter concebido essa opção estratégica ainda nos tempos de opositor exilado do regime ditatorial que pretendia continuar a guerra colonial como única forma de subsistência internacional do Estado português, sempre me senti particularmente responsável pelos destinos da sociedade portuguesa no processo de integração europeia. Essa foi aliás uma das mais fortes razões que me levaram ao Parlamento Europeu em 1986, nos primeiros tempos da integração de Portugal nos órgãos comunitários. Quis assim participar, no órgão a que me foi possível aceder, no início de um processo a que já dedicara muito do meu tempo.”

E certamente por isso deu prioridade a terminar, entre as várias obras que tinha entre mãos nos últimos anos de vida, o livro Não Há Mapa Cor de Rosa – A História (Mal)dita da Integração Europeia.