Proibir os piropos

Há uns meses surgiu em certas mentes uma ideia peregrina: criminalizar os piropos. É, tipicamente, uma ideia politicamente correcta. Que tem origem numa inquietante concepção do mundo que tende a eliminar as diferenças entre homens e mulheres. Que procura uniformizar tudo, metendo homens e mulheres no mesmo saco. Decreta-se a criminalização do piropo porque é…

Para os defensores desta ideia, qualquer acto que possa distinguir homens e mulheres tem de ser reprimido. Homens e mulheres devem ser iguais – vestindo-se da mesma maneira, reagindo da mesma maneira, pensando da mesma maneira, fazendo as mesmas coisas, etc. Tudo o que seja diferenciar é mau. É errado.

Esta forma de pensar está a alastrar perigosamente no Ocidente. Um amigo dos meus filhos, jovem viajado pelo mundo, dizia-me há tempos que em Inglaterra – onde ele vivia na altura – está em curso um processo acelerado de indiferenciação dos sexos. E ai de quem os tente diferenciar! É coberto de ridículo e pode ser ameaçado de ir a tribunal.

Faz-me impressão que esta gente não perceba que, no dia em que não houver diferenças entre homens e mulheres, a humanidade tornar-se-á uma tremenda chatice. Quer para os homens quer para as mulheres. E a espécie humana estará ameaçada, pois vive da atracção que decorre da diferença.

O caminho deveria, pois, ser permanentemente o contrário: valorizar em cada época as diferenças entre os géneros. Explorar as potencialidades daquilo que os distingue, do que há de específico em cada um.

Até porque a indiferenciação em curso não se fica pelos géneros mas tende a aplicar-se a tudo. Já percebemos, por exemplo, que na classe política, cá e lá fora, existe uma tendência para todos falarem do mesmo modo, reagirem do mesmo modo, vestirem-se do mesmo modo (fato cinzento e gravata azul, porque o azul é a cor mais neutra).

Ora, os políticos que se destacam são exactamente aqueles que não seguem as regras, que não imitam os outros, que não falam da mesma maneira, que não usam as mesmas gravatas. Aliás, o carisma tem que ver exactamente com a capacidade para impor um estilo próprio. Nas pessoas carismáticas, certos defeitos acabam por funcionar a seu favor, porque ajudam a construir uma identidade. Ajudam o indivíduo a emergir na multidão.

Os exemplos abundam: Cavaco Silva, o político português com mais sucesso (alcançou quatro maiorias com percentagens superiores a 50% dos votos), tem dificuldades de dicção e pouco à-vontade perante as câmaras de televisão.

Um belo dia, em conversa com uma conhecida jornalista muito politicamente correcta, puxei a conversa para a divisão das tarefas domésticas. Dizia-me ela que, em sua casa, ela e o companheiro faziam exactamente as mesmas coisas, sem qualquer distinção.

Para a provocar, disse-lhe com ar convicto que isso era muito mau. Expliquei-lhe que a divisão do trabalho em casa era a melhor forma de as coisas funcionarem bem. Quando cada membro do casal sabe o que tem de fazer, criam-se rotinas e as tarefas domésticas são muito facilitadas. Reduzem-se os atritos, porque cada um sabe o que tem e não tem de fazer. E, para tornar a ideia mais convincente, estabeleci o paralelo com as empresas – onde as pessoas não fazem todas o mesmo. Cada um tem a sua função.

Ela não pareceu muito convencida com os meus argumentos, mas também não contra-argumentou. Entretanto, vim a saber que se separou do companheiro.

A valorização da diferença ganha ainda mais sentido num tempo em que a globalização avança a galope. O mundo tende para a uniformidade: uma só raça, uma só cultura, uma só língua. Ora, se começarmos também a esbater as diferenças entre os sexos, a uniformização será total. A única forma de resistir a este movimento é defender a diversidade. Preservar a riqueza que representa haver culturas, hábitos, línguas, pessoas diferentes, homens e mulheres.

Vem tudo isto a propósito da abstrusa ideia de ilegalizar o piropo. Mas o piropo faz mal a alguém? Há mesmo piropos bonitos, elegantes, poéticos. Eu tinha um colega no liceu que, sempre que passava por uma mulher bonita, dizia-lhe baixinho: “Que me importa morrer, se no cemitério há flores?”. Nunca mais esqueci esta frase. Pode ser parola, mas que mal tem? Ao ouvirem isto, algumas raparigas sorriam, outras faziam caras feias – mas estou certo de que, lá por dentro, sorriam também. Quem não gosta de ouvir um elogio?

O meu pai, quando esteve na Suécia, dizia que lá as coisas funcionavam ao contrário dos países latinos: eram as raparigas que assobiavam aos homens e lhes dirigiam piropos. E o meu pai pelava-se por ouvi-los!

Num livro que estou a escrever, cujo título provisório é A Mulher de Cinquenta Anos, a protagonista, Cármen, tem imensa nostalgia do tempo em que ouvia piropos na rua. Na juventude, os piropos aborreciam-na; mas quando começou a envelhecer sempre que um homem lhe dava um piropo o seu ego rejubilava!

Isto lembra irresistivelmente os versos de uma canção de Amália: “Quando a gente passa e um rapaz suspira, pode ser mentira, pode ser mentira; mas se for um homem já de certa idade, pode ser verdade, pode ser verdade”.

Os piropos fazem parte do património das relações entre homens e mulheres, pelo menos nos países latinos. E – por estarem a cair em desuso – deviam ser preservados e não diabolizados. Deviam ser considerados ‘hábitos em extinção’.

Claro que, a par de piropos elegantes, há os piropos ordinários, alarves, boçais. Antigamente, as mulheres evitavam passar junto de prédios em construção para não ouvirem certos piropos habituais na boca dos operários. Um dos mais recorrentes era: “Comia-te toda!”. Trata-se de uma evidente grosseria. Mas isso verifica-se em tudo na vida. Há as críticas elegantes, fundamentadas – e as críticas básicas ou mesmo ofensivas. Chamar “canalha” ou “palhaço” a alguém também não é nada bonito. Mas por isso vamos ilegalizar a crítica?

Fique o leitor descansado: eu nunca dirigi piropos a ninguém na rua. Mas mais por timidez, reconheço, do que por falta de vontade: às vezes bem me apetecia dizer um piropozinho! E nunca achei que seria um criminoso se o fizesse.

A minha defesa do piropo tem a ver com o facto de ser totalmente contra uma sociedade asséptica, inodora, indiferenciada, descolorida, onde as pessoas estão sempre a reprimir o que sentem e não podem exprimir o que pensam em nome das convenções, do politicamente correcto.

Sou totalmente contra uma sociedade em que as mulheres vistam fatos-macaco, cortem o cabelo à escovinha e dêem uma bofetada nos rapazes que se atrevam a fazer-lhes um simples elogio.

Sou fervorosamente a favor de uma sociedade que valorize a distinção dos géneros – e de uma forma geral de uma sociedade que valorize as diferenças entre as pessoas. E onde as pessoas possam ser elas próprias.

jas@sol.pt