João Pedro Plácido: ‘Empurrei a realidade para a frente da câmara’

Prémio para melhor longa-metragem portuguesa no DocLisboa, Volta à Terra é a homenagem do realizador de 36 anos à aldeia minhota Uz – onde os telhados são de colmo e o consumismo não bateu à porta.

Enquanto director de fotografia que nunca quis ser realizador, por que abriu a excepção com este filme?

A vontade de fazer um filme na aldeia de Uz, em Braga, vem desde os 13 anos, quando recebi a minha primeira câmara de vídeo. Os meus avós maternos, que me educaram no centro de Lisboa, viveram lá até eu nascer. Se ali passei todas as férias escolares, hoje levo a minha filha que está a descobrir a liberdade do campo. Sempre quis prestar homenagem àquelas pessoas.

Uz tem 54 habitantes. Deles escolheu seguir de perto Daniel, um jovem agricultor e pastor, e António, um emigrante regressado à terra.

Sei o nome e a idade de toda a gente, porque fiz um censo para o meu trabalho. No início queria fazer o retrato de três gerações. Havia duas crianças de nove anos que saíram durante a montagem. Queria espelhar que mesmo com diferentes idades haveria algo em comum em todos eles. Conheço o Daniel desde que nasceu: ele é feliz, consciente do que tem e não tem e do que poderia ter, sem no entanto querer mais. Esse é talvez o maior problema ocidental, querer sempre mais. É muito sábio da parte dele saber aquilo de que quer cuidar. Ao mesmo tempo, o Daniel tem um discurso idêntico ao de um senhor de 70 anos; nesse sentido António espelha o futuro dele. António voltou, comprou a maior quinta na Uz e transformou-se num escravo do trabalho.

Quis, então, homenagear…

Uma forma de ser não consumista, antes respigadora, não individualista, antes comunitária, de uma consciência profunda do meio envolvente, de uma empatia com a natureza e com os animais, no fundo mais primordial. É engraçado que a Uz só existe porque as pessoas ao mesmo tempo que se sentem seguras em relação ao que têm são extremamente conservadoras. E talvez esse seja um bom conservadorismo. O filme foi rodado no ano de máxima austeridade, 2012, e temos um lugar onde a crise não existe entre as pessoas.

É desse primordialismo que nasce uma rodagem repartida pelas quatro estações?

Para retratar a vida de um agricultor é preciso apanhar essas quatro fases, tal como a movimentação, a chegada e a partida de pessoas na aldeia. A mim interessava-me essa dinâmica ao longo do ano. No Inverno não há acontecimentos sociais além da ida à missa. Na Primavera começam os trabalhos em colectivo. No Verão aparecem os visitantes. No Inverno volta-se a uma espécie de solitude, os campos estão em pousio.

O título é uma referência a esse ciclo da vida?

Volta à Terra porque retrata um modo de vida que encontramos em qualquer lugar remoto onde as pessoas vivam da terra; porque enquanto espectadores creio que todos temos ou conhecemos alguém com origens rurais e ver o filme é como um regresso a elas; e finalmente porque é o que o lavrador faz antes de lançar as sementes.

Levou o Daniel à estreia no festival DocLisboa. Como seria se o tivesse levado a Cannes, onde o filme passou na secção paralela ACID?

Se o Daniel tivesse ido a Cannes, a primeira coisa que ele diria uma hora depois de ter chegado seria a de que se queria ir embora, tal como aconteceu em Lisboa. Lembro-me de ele perguntar, estávamos na Praça de Espanha, 'mas para onde é que vai esta gente toda de táxi de um lado para outro?'.

Em Cabeceiras de Basto não existe cinema?

Acho que o mais próximo é em Guimarães. Muitos da Uz foram pela primeira vez ao cinema aquando da estreia no Porto/Post/Doc. Fizeram uma viagem de uma hora e meia com uma carrinha organizada pela Câmara Municipal, pela Junta de Freguesia e pela produtora O Som e a Fúria, que lhes ofereceu o almoço.

Como correu a sessão?

Foi a experiência mais cinemática da minha vida ter uma sala cheia de pessoas que falam com a tela por que acham que o que está nela está ali presencialmente. Entre risos incontáveis até pessoas que saem da sala lavadas em lágrimas, a paleta de emoções não podia ter sido mais vasta.

Em que medida levou um guião pré-feito, abriu espaço ao imprevisto e a partir deste dirigiu uma narrativa?

O guião é uma base para o que explorar e que olhar tomar. Tudo o que filmei estava à espera que acontecesse como aconteceu, tirando aquelas frases, aquelas falas que, não tendo possibilidade de as escrever, se revelaram boas surpresas e possíveis fios condutores. Foi o que aconteceu ao notar que o Daniel falava constantemente na falta de uma rapariga. Não tendo muitas possibilidades de conflito, centrei-me nesse aspecto e limitei-me a empurrar essa realidade para a frente da câmara.

Revê-se em 'Aquele Querido Mês de Agosto', de Miguel Gomes?

O filme do Miguel surge mais como uma confirmação de que era possível fazer em terreno português o que o Abbas Kiarostami me tinha mostrado aos meus 16 anos, com A Vida Continua, pegando em pessoas que não actores e pondo-as a viver o seu próprio papel. As primeiras obras dele, até O Sabor da Cereja, fizeram-me dizer: 'É este tipo de cinema que quero fazer'. Não quis repetir as fórmulas de Les Paysans, de Raymond Depardon, com planos fixos de mais de dez minutos, retrato do que é ser um lavrador onde a mecânica está na palavra. Nem de As Quatro Voltas, de Michelangelo Frammartino, que também é muito lento e em que a câmara está muito distante das pessoas. Interessava-me um filme em que o principal dispositivo fossem as pessoas, a força do trabalho, sem uma postura de estudo etnográfico ou ambiciosa intelectualmente.