Premiar a delação na Justiça

Atenuar a pena dos arguidos que assumem os crimes durante a investigação ou no julgamento é algo que já se pratica em Portugal. Mas a lei não permite que se assuma o compromisso de uma pena, negociada previamente, se os arguidos confessarem o crime e denunciarem outros envolvidos – como acontece nos sistemas judiciais do…

Por isso, já há quem defenda que esse instrumento deveria ser introduzido por Portugal no combate à grande criminalidade económico-financeira, sobretudo no que diz respeito à corrupção. A maioria dos juristas que falaram com o SOL só não tem a certeza se o nome adotado pelo Brasil – ‘delação premiada’ – será o melhor conceito. De modo geral, preferem o termo ‘colaboração’.

“O que acontece em Portugal é que, se o arguido confessar um crime em julgamento, pode beneficiar de uma atenuação de pena. Mas devia-se começar a estudar um regime que pense também nos casos em que o arguido colabora na investigação”, explica o procurador Rui Cardoso.

Entre os juízes, há também quem pense desta forma. Um desembargador da Relação de Lisboa, que pediu para não ser identificado, explicou que a colaboração premiada deveria ser aprofundada na realidade portuguesa. Até porque, defende, respeita a Constituição e o ordenamento europeu: “Em casos anteriores, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem referido que esses instrumentos estão conforme o ordenamento”.

Em Portugal, apesar de haver situações em que se “aflora a figura do ‘arrependido’”, falta “um pensamento harmónico sobre esta matéria”, considera Rui Pereira, ex-ministro da Administração Interna e Presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo.

O certo é que já se verifica uma grande aproximação à ‘delação premiada’ nos crimes de branqueamento de capitais e de terrorismo – em que se prevê uma atenuação de pena para os arguidos que colaborem com a investigação criminal. No caso do terrorismo, o arguido pode mesmo ser dispensado de pena se, por exemplo, abandonar a organização a que pertence. Já para quem esteve envolvido em actos de corrupção e recebimento indevido de vantagem, o arrependimento só serve para atenuar a pena caso ainda não tenha sido iniciada qualquer investigação – ou seja, se o crime for descoberto através da denúncia de algum elemento dos que o praticaram (o que é raro acontecer nestes crimes).

ONU recomenda

Os juristas que defendem a introdução da colaboração premiada em fase de inquérito invocam o artigo 37.º da Convenção das Nações Unidas, de 2003: “Cada Estado-parte considerará a possibilidade de prever, em casos apropriados, a mitigação de pena de toda a pessoa acusada que preste cooperação substancial à investigação ou ao indiciamento dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção”.

Rui Pereira explica, neste contexto, que a “nossa legislação peca mais por defeito do que por excesso”. Defendendo que não se deve abrir a porta aos chamados agentes provocadores (uma técnica usada com frequência nos EUA), o especialista não tem dúvidas de que este tema “deve ser pensado de forma sistemática, alargando-se  aos chamados crimes sem vítimas e à criminalidade organizada”.

José Bonifácio Ramos, antigo membro do Conselho Superior do Ministério Público, defende que, “no combate a certos  crimes, não pode haver tibieza nos meios a utilizar”. Por isso, o advogado  defende que, “com todas as cautelas, deve-se estender os meios que já hoje existem para alguns crimes à grande criminalidade económico-financeira no geral e à corrupção em particular”. “Para combater a corrupção todos os meios são legítimos”, justifica.

A necessidade de ter algumas cautelas é também frisada pelo advogado Ricardo Sá Fernandes, que de forma inédita em Portugal foi denunciante de corrupção no caso Bragaparques. Sendo adepto do mecanismo, salienta que “é preciso existir um equilíbrio para que a colaboração premiada não tenha efeitos perversos, nomeadamente delações falsas”.

O procurador-geral adjunto António Cluny,  representante de Portugal no Eurojust, tem uma posição mais moderada. “Existem já possibilidades de tomar em atenção a colaboração de um arguido”, salienta. “Em sede de futuras reformas, pode-se pensar nessa questão, mas há matérias mais importantes do que esta”.

O juiz Nuno Coelho também considera que esta não é uma prioridade: “A nossa ordem legal tem andado a par com o que são as melhores recomendações do Conselho da Europa”.

Do lado dos que não concordam com a delação premiada está o advogado Paulo Saragoça da Matta. O jurista considera que seria “a melhor forma de não se ter de fazer investigações criminais”.  “Até acredito que, se se permitir a delação premiada, se possa ir mais longe na investigação. Mas se se permitir a tortura ainda se vai mais longe”, ironiza. Saragoça da Matta critica ainda quem acusa os advogados de serem contra estes mecanismo por ser uma forma de facilitar a obtenção de prova: “É preciso não esquecer que sou advogado de arguidos em alguns casos e de assistentes em outros. Em nenhuma das posições defendo esse instituto. São meios incivilizados, é o dark side”.

carlos.santos@sol.pt