Um novo Saramago

Bruno Vieira Amaral acaba de receber o Prémio Saramago por As Pequenas Coisas, o livro com que se estreou no romance em 2013. Fazendo de um bairro personagem principal, resgata a margem sul de Lisboa das notícias para a inscrever no mapa literário português.

Um novo Saramago

Foi em 2013 que o Bairro Amélia tomou de assalto as livrarias, tornando-se num dos principais protagonistas literários do ano e trazendo a margem sul do Tejo para a ribalta. As Primeiras Coisas assinalava a estreia no romance de Bruno Vieira Amaral (que já tinha publicado, nesse ano, Guia para 50 Personagens da Ficção Portuguesa) que com excelente receção por parte da crítica, ganhou, entre outros prémios, o Pen Clube de Narrativa. E que agora, dois anos depois, volta à ribalta, tendo ganho na terça-feira o Prémio José Saramago, um dos mais importantes da língua portuguesa, atribuído a uma obra assinada por um autor de até 35 anos (à data de publicação).

Não terá sido por acaso que, ao aceitar o prémio, Bruno Vieira Amaral o dedicou aos vizinhos. As Pequenas Coisas é um romance feito de personagens, habitantes de um bairro ficcional, algures na margem sul do Tejo, que em muito deve ao local onde Bruno Vieira Amaral cresceu, o Vale da Amoreira, no Bairro de Fundo de Fomento à Habitação, na ‘outra banda’ do rio, local sistematicamente arredado da literatura, protagonista apenas de noticiários, sempre com um mesmo adjetivo: violento. Neste romance, porém, Bruno Vieira Amaral resgata-o – e a tantos como ele –, retirando-lhe o estereótipo, mostrando as gentes que tem por dentro, dando nome e história a cada uma, quase todas decorridas nos anos 80.

«O Bairro Amélia é uma galeria de personagens, em que  factos autobiográficos são cruzados com factos da imaginação pura», diz. «Ao dedicar o livro aos vizinhos quis fazer uma apologia da vida de outro tempo, em que as pessoas se conheciam. Hoje quase só existem comunidades virtuais.Quando era miúdo conhecíamos os vizinhos todos. Nalguns casos eram quase família. Foi quase como fazer arqueologia, esse tipo de relações está praticamente extinto. Os vizinhos vinham a nossa casa, nós íamos a casa deles. Não havia quase vidas individuais, eram vidas em comunidade».Talvez por isso, Bruno Vieira Amaral tenha tentado encontrar a individualidade de cada personagem, não olhando para o bairro como um todo, mas para as histórias individuais que resgatam as pessoas do anonimato.

Difícil é separar realidade e ficção. «Inspirei-me em casos reais, mas o que fiz foi entretecer isso numa narrativa ficcional. Eu próprio às vezes já não sei se algumas coisas aconteceram mesmo ou se as inventei. Os factos reais servem como ponto de partida, mas não como ponto de chegada. O ponto de chegada é a literatura. Mas é mais fácil soltar a imaginação quando se tem por base sólida a realidade».

Hoje, o autor_já se mudou. Passou pelo Barreiro, agora vive mais próximo da casa da infância, na Baixa da Serra. Mas já não há ADN partilhado, nem com o bairro onde cresceu, nem com o bairro que ficcionou. «Fazemos uma vida mais celular, nas nossas pequenas células e celas, com as nossas famílias. As pessoas não se conhecem. Quem conhece o nosso filho se o deixarmos ir brincar para a rua?».

Nessa sua célula, Bruno Vieira Amaral – que depois de As Primeiras Coisas publicou Aleluia!, um ensaio sobre várias igrejas protestantes em Portugal – já está a escrever um novo romance. Aliás, há mais de dois anos que o começou, mas com uma vida que não pertence apenas à escrita (trabalha na editora Quetzal e na revista Ler) ainda tem muito pela frente. «Queria escrever sobre um caso real, que também aconteceu no bairro, um homicídio de um primo meu, há cerca de 30 anos. À medida que fui investigando percebi que tinha ali um livro maior do que tinha pensado de início. Não escrevo com a regularidade que o livro precisaria, ainda está a meio».

Este prémio talvez seja o combustível de que precisava para acelerar. Aos 37 anos, o autor acaba de se juntar a uma constelação de autores que, depois de começarem como as promessas da literatura em língua portuguesa, estão já nela firmemente inscritos (foram já distinguidos com o Prémio Saramago Paulo José Miranda, José Luís Peixoto, Adriana Lisboa, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, João Tordo, Andréa del Fuego e Ondjaki). Com o Bairro Amélia, Bruno Vieira Amaral também já deixou a sua marca.

rita.s.freire@sol.pt