Um agente secreto no PREC

A exposição do artista canadiano Stan Douglas que inaugurou na semana passada no Museu Berardo, em Lisboa, chama-se Interregnum e é uma história antiga, com um longo intervalo pelo meio e o regresso a um passado não assim tão longe – 1975 – mas que para a maioria dos portugueses vivos é apenas um pequeno…

A história de Interregnum, que inaugurou na passada quinta-feira e permanece aberta ao público até 14 de fevereiro de 2016, começou em 2008. E é “a concretização de um sonho de oito anos”, comenta Pedro Lapa, diretor artístico do Museu Berardo e curador da exposição desde a sua génese. Stan Douglas um artista que usa habitualmente fotografia, vídeo e filme, premiado em 2012 com o Infinity Award e presença repetida na Bienal de Veneza, já tinha vindo a Portugal. Expôs no Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC), em 2000, quando Lapa era então diretor deste museu. Entretanto, Lapa, como um dos curadores da Ellipse Foundation – a coleção de arte contemporânea que estava a ser reunida pelo Banco Privado Português – convidou Douglas para produzir uma obra em Portugal. Estávamos no começo de 2008, antes da grande crise financeira mundial. A Ellipse estava a comprar.

Douglas apresentou a ideia que há muito o cupava de “fazer uma adaptação cinemática de O Agente Secreto, de Joseph Conrad, o primeiro romance de espionagem que se conhece”, conta à Tabu, na visita à exposição. Em The Secret Agent, a novela publicada em 1907 do autor de O Coração das Trevas,o anarquista Verloc recebe a missão de fazer explodir o Observatório de Greenwich, símbolo do conhecimento científico da época. Em Portugal, a equipa da Ellipse discutia, como contou Pedro Lapa, qual o contributo português para a modernidade, o contributo cujo  desaparecimento causasse um aparato tão grande quanto a explosão de Greenwich. “Chegámos à conclusão que a revolução portuguesa de Abril tinha sido o contributo dos portugueses para a modernidade do século XX”, diz Lapa.

A novidade das cooperativas agrárias

Stan Douglas, fascinado pelo fluxo dos acontecimentos do Processo Revolucionário em Curso (PREC) português, passou grande parte do ano e todo o verão de 2008 a investigar a história portuguesa, com a ajuda de historiadores portugueses também, e a escrever. Além de interessado na novela de Conrad sobre terrorismo, Douglas estava absorvido pela ideia de “como o terrorismo foi evoluindo ao longo da história; o anarquismo dos anos 60; o IRA, no Reino Unido; as Brigadas Vermelhas em Itália; e o Baader Meinhof na Alemanha”. Quanto à situação portuguesa de 1975, “havia uma complexidade que me fascinou. Diferentes grupos, usando técnicas do terrorismo, procuravam influenciar a opinião pública”. O ano do PREC, repleto de ocorrências explosivas, parecia ideal para fazer um Agente Secreto à portuguesa. “A revolução tinha sido pacífica, só duas pessoas morreram, mas no período de dois anos, entre a revolução e a aprovação da Constituição, muitas coisas incríveis aconteceram – como as cooperativas agrárias, por exemplo. Parecia que as pessoas estavam à procura de novas soluções para uma situação que era única e nova”.

Entretanto, já com a pesquisa feita, o levantamento dos locais de filmagem e parte do casting, a Ellipse caiu com o colapso do banco presidido por João Rendeiro, o BPP. “E eles telefonaram-me a dizer que não valia a pena voltar porque já não havia dinheiro”, conta Stan Douglas, agora a rir, mas avisando que, na altura, ficou “mesmo deprimido”.

No interregno, o artista representado pela galeria David Zwirner, em Nova Iorque, fez outros trabalhos, como o Helen Lawrence, uma peça multimédia, que está agora a ser exibida em Nova Iorque e a circular pelo mundo. Mas com toda aquela pesquisa sobre os anos do PREC em Portugal que tinha perdido, sentiu que a devia aplicar e fez, a propósito disso, duas peças que também estão presentes na exposição no Museu Berardo. “Dei-me conta de que a revolução em Angola aconteceu por causa do 25 de Abril português, portanto encenar esse momento era para mim também uma forma de aplicar tudo o que tinha apreendido no processo de estudar esse período da História portuguesa”. Disco Angola (2012), um conjunto de fotografias que abre a exposição, encena o momento em que o disco sound explodia em Nova Iorque, com a dança ao estilo Saturday Night Fever a invadir os clubes noturnos, ao mesmo tempo que em Angola nasciam os movimentos de libertação e a consequente manipulação das potências da Guerra Fria. Foram encenadas e fotografadas em Nova Iorque, com modelos que reconstituem o ambiente das discotecas nova-iorquinas e o processo de descolonização em Angola, incluindo uma que ‘mostra’ os portugueses ‘retornados’ à espera do transporte para a metrópole. “Podemos imaginar um repórter fotográfico de uma revista que está a fotografar o nascimento de um movimento nos Estados Unidos e é chamado a reportar o que está também a ocorrer em Angola”, explica Pedro Lapa. Duas realidades opostas, distantes mas que reconstituem o puzzle de um momento histórico.

Charles Mingus no Cascais Jazz

Luanda-Kinshasa (2013), a segunda peça da trilogia de Interregnum, trata o free jazz e o nascimento do afrobeat nos anos 70. É um filme em loop, que encena uma gravação no famoso estúdio conhecido como The Church, da Columbia Records, onde Miles Davis produziu vários discos. E é também um tributo a Miles e ao seu impulso para a criação de estilos de fusão. “Bons ouvidos habituados ao jazz perceberão também que há aqui uma referência ao afrobeat que o Manu Dibango, músico dos Camarões, lançou”. A gravação imaginária, baseada na realidade, coma recriação da época é projetada por segmentos que vão sendo alinhados aleatoriamente, um pouco também como o próprio free jazz. A datação histórica, refere Pedro Lapa, é dada também pelo facto de um dos presentes no estúdio estar a ler a biografia de Charles Mingus, editada em 1971. A ligação entre a ideia de fusão de Miles Davis e a continuação com o afrobeat, que não ocorreu sob a tutela direta de Miles “é apresentada como uma utopia”. Se non è vero è ben trovato. E seria bonito se tivesse acontecido. O filme também evoca, segundo o ensaio de Pedro Lapa, escrito para acompanhar a exposição, e publicado como catálogo, os anos do Cascais Jazz e, principalmente, o momento em que em 1971 Charlie Haden dedica um tema aos movimentos de libertação das colónias portuguesas, para grande desagrado do regime de então.

Rebentar com os cabos da Marconi

The Secret Agent (2015) é o prato forte da exposição. Depois de anos em águas de bacalhau, em fevereiro e março de 2015 – e com o patrocínio e produção executiva da galeria David Zwirner, do próprio artista, e com produção de O Som e a Fúria, a produtora portuguesa de filmes como os de Manoel de Oliveira e Miguel Gomes – a equipa ocupou os locais de filmagem em Lisboa. O Nimas transformou-se no cinema de Verloc, vemos a leitaria Salitre, o Palácio Foz, o Palácio da Justiça e reconhecemos Beatriz Batarda a fazer de senhora Verloc, Gonçalo Waddington, Miguel Guilherme, Marcelo Urghege, Albano Jerónimo…

The Secret Agent, falado em inglês, transporta a intriga para a Lisboa do PREC, com a manipulação das forças dos dois blocos que governavam o mundo, a partir de Moscovo e Washington, e o grupo terrorista terá o plano de fazer explodir os cabos submarinos da Marconi que ao largo de Sesimbra transportavam as telecomunicações sob o Atlântico até aos Estados Unidos. Uma afirmação de força que de facto chamaria a atenção do mundo. “Curiosamente, falei com uma das historiadoras que nos ajudaram na investigação e ela falou-me de pessoas que estiveram presas e que tinham imaginado esse plano”, conta Stan Douglas.

O filme, de 53 minutos, é projetado em seis ecrãs que obrigam o espetador a rodar sobre si próprio para acompanhar e ter uma visão panorâmica das várias ações simultâneas. Enquanto que Verloc fala com a mulher na cave do cinema, alguém entra no primeiro piso, vemos uma plateia a ver o filme, e outros momentos passam em paralelo nos outros ecrãs. E no fim, como no texto original de Conrad, um inocente é sacrificado para nada. E como seria a tradição das novelas de espionagem.

Para Pedro Lapa, o recurso aos vários ecrãs, recorda ainda a apresentação de Ray e Charles Eames no pavilhão norte-americano na Feira de Moscovo de 1959, em que o casal de designers exibia em sete ecrãs pedaços de sete dias da vida dos ‘americanos’, repleta de novas tecnologias e gadgets, o que era mostrado como uma farpa no coração do império soviético.

Juntas, as três peças de Interregnum apresentam um retrato ficcional do PREC inserido no contexto cultural da época, em plena guerra fria e a explosão de uma cultura hedonista, e feito a partir de material de arquivo e documentação histórica.

Stan Douglas, nascido em 1960, em Vancouver, tem sido descrito como um artista interessado nas “utopias falhadas da modernidade e tecnologias obsoletas”, inspirado por escritores como Samuel Beckett e também Marcel Proust e Hoffman. Esteve presente em várias exposições e festivais internacionais como a Documenta e a Bienal de Veneza em 1990, 2001 e 2005.

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