Fernando Nobre: ‘Se morrer numa missão não quero que o meu corpo volte’

No programa Grandes Portugueses o país elegeu-o como um dos maiores de sempre. Antes de se ‘meter’ na política era consensual, não havia quem dele não gostasse ou quem dele prescindisse. A sua AMI era sempre citada como exemplo. À direita ou à esquerda elogiava-se os seus méritos, prova inequívoca de que os portugueses estavam…

Salvou muitas vidas, muitos morreram-lhe nos braços. Muitos continuam a morrer-lhe nos braços. Explica nesta longa entrevista que a sua desilusão política, que as pessoas que o desiludiram (algumas que nomeia nesta conversa) não o fizeram desmobilizar da esperança que continua a ter no futuro. A esperança no ser humano, no amor, na procura da felicidade.

Comecei pelos dias em que se sentiu humilhado. O gravador começou a gravar, a conversa foi esta.  

Há uns meses afirmou não rejeitar a hipótese de se voltar a candidatar à Presidência da República. Em que momento deixou de a considerar?

Há uns quatro meses. Depois de conversar com a minha mulher, os meus filhos, e na AMI, entendi que não fazia sentido. Há questões pendentes da outra candidatura e, por outro lado, a AMI está a precisar de mim de forma empenhada e a tempo inteiro.

O que o motivou a colocar a hipótese de avançar? Um ajuste de contas?

Nunca um ajuste de contas, mas a convicção de que a minha candidatura poderia ter feito a diferença, como o fez há cinco anos. Julgo que se passaram muitas coisas, a começar pelo episódio em que aceitei o convite do Dr. Passos Coelho para ser cabeça de lista por Lisboa pelo PSD.

Que nunca foi suficientemente explicado.

Nunca me foi dada a hipótese de explicar. As pessoas não entenderam que a minha intenção não era a de ocupar um lugar, não era a de ter um ‘tacho’, mas o ter entendido que era bom mudar a página em relação a José Sócrates; o país estava à beira do precipício. Por outro lado, julguei ser uma excelente oportunidade para assumir o lugar de presidente da Assembleia da República, ser o primeiro independente a fazê-lo. A Assembleia da República é um órgão desacreditado, e continua a não ter qualquer crédito. E o terceiro passo, se tudo tivesse corrido bem, era o de poder quatro anos depois recandidatar-me a Belém com outro currículo político.

O seu grande estigma.

Que sempre me lançaram à cara. Isso faz-me rir, parece que a experiência partidária exercida no nosso país nos últimos 40 anos produziu resultados extraordinários. Há partidos que pensam ter o exclusivo da gestão da República, que mais ninguém se pode meter nisso.

Acha que foi por isso que foi rejeitado pelos deputados?

Não tenho a mínima dúvida. Os números falam por si. Fui o único candidato na história do Parlamento a ser rejeitado (entre todos os candidatos propostos  por uma maioria parlamentar fui o único a sê-lo). Os dois partidos tinham 132 deputados, fiquei-me pelos 108 votos. Tentei ainda uma segunda vez, tive menos um voto.

É verdade que Passos Coelho o tentou convencer a ir uma terceira vez a votos?

Após o fracasso nas duas primeiras votações, o Dr. Passos Coelho disse-me que ainda tínhamos condições para tentar mais duas vezes na manhã seguinte. Mas para mim já bastava, tinha entendido, não estava para me sujeitar a mais um dia como aquele.

Nesse dia, certamente um dos piores da sua vida, lembrou-se do seu pai?

Lembrei, sim, o mais possível. O meu pai sempre nos tinha dito (a mim e aos meus irmãos) para nunca nos metermos na política porque esta era suja. Foram as circunstâncias. Passamos a vida a ouvir dizer que o país precisa de novos atores, de gente independente dos partidos, com uma vida respeitável, mas depois os mesmos que o dizem publicamente são os primeiros a virar as costas e a fechar a porta a essa hipótese.

Está a pensar em alguém?

Em muitos. Repare, falei com quase 20  pessoas antes de me candidatar, pessoas com percurso. Nenhum deles me desmobilizou e quase todos criticaram o primeiro mandato do professor Cavaco Silva, mas depois quase todos estiveram na comissão de honra da sua candidatura. Nada é linear na política.

O mundo da política foi uma surpresa para si?

O meu mundo era outro, é outro. Tirando a medicina, a minha experiência cívica foi sempre concreta. Em adolescente trabalhei com autistas em Bruxelas, em jovem adulto escrevi centenas de cartas para os asilos psiquiátricos para onde eram transferidos opositores políticos soviéticos.

Logo a seguir Os Médicos Sem Fronteiras.

Durante seis anos, e depois a AMI, em 1984. Um percurso cívico de 40 anos. Não quer dizer que seja o paraíso, há concorrência para financiamentos, mas nada que se pareça com o que se passa na vida política partidária. Não estava habituado.

Se pudesse voltar atrás teria recusado o convite de Passos Coelho?

Refazer a história é sempre muito fácil. Foi uma decisão que me foi difícil, pedi uma semana para pensar. O convite foi-me feito num sábado pelo Dr. Passos Coelho em casa de um amigo comum, éramos três a jantar à volta de uma mesa.

Não nesta casa?

Não nesta casa. Perguntou-me se aceitava liderar o círculo de Lisboa, nunca um independente ocupara esse lugar, e falou-me logo da sua intenção de me ver presidente da Assembleia. Na altura perguntei ao Dr. Passos Coelho se estava consciente dos problemas que eu traria ao seu partido. Disse-me que do partido trataria. Pedi-lhe uma semana para pensar.

Confirma que recebeu por esses dias um contacto do Partido Socialista?

Fui abordado no dia a seguir. A 3 abril, estava eu aqui sentado, recebi um telefonema a perguntar se podia jantar com dois elementos do governo de José Sócrates. Respondi que não havia problema nisso, mas era domingo e terça partia para o Sri Lanka. Perguntei se o encontro não podia esperar pelo meu regresso, responderam-me que não pois era importante que falássemos. Só restava segunda e assim foi, jantámos no Dízimo, em Paço de Arcos.

Um nome sugestivo.

Foi um jantar muito incomodativo para mim. Primeiro, já sabiam que tinha tido a conversa com o presidente do PSD, o que me deixou muito triste. Depois, o Dr. Vieira da Silva (por quem tinha admiração), deu a entender que sabia que eu já aceitara. E disse-me que podia pedir o que achasse dever pedir. Foi complicado. Respondi-lhe que nada tinha de pedir; que era verdade que tinha recebido uma proposta mas ainda não me comprometera.

Foi então para o Sri Lanka.

Uma semana terrível. Tive de pesar os prós e os contras e avancei. Disse que sim ao Dr. Passos Coelho. Peguei no telefone e disse-lhe que sim. Estava no meio do Sri Lanka, na serra e à procura de rede, no sábado dia 9. Aceitava o desafio, a decisão foi anunciada em Portugal no dia seguinte. E quando foi anunciada, tenho o registo, nas horas a seguir recebi 243 telefonemas.

Para quem possa duvidar da sua memória, recordo que lecionou como assistente a cadeira de Anatomia, a disciplina de medicina que mais apela à memória.

Tenho uma boa memória, há datas que me ficaram marcadas a ferro. Um independente começa por ser tolerado, depois ostracizado e por fim rejeitado – no meu caso, naquele dia na Assembleia da República, foi três em um. Acabei rejeitado. Mas sei por quem. Sei quem tramou tudo aquilo.

Quem foi?

Quer nomes?

Quero.

O Dr. Mota Amaral, por exemplo. No dia 18, sexta-feira, tomo o pequeno-almoço com o Dr. Paulo Portas no Hotel Altis Belém; diz-me que não poderá votar em mim porque fui mandatário nacional do irmão, Miguel Portas, nas eleições ao Parlamento Europeu. Miguel era um homem culto, viajado, que mal poderia ter isso? Saí do pequeno-almoço e recebi uma chamada do Dr. Mota Amaral a perguntar-me se o podia receber, fez questão de ir ter comigo. Falámos três quartos de hora e garantiu-me que eu iria ser eleito, pediu-me também para não ligar ao que se dizia nos corredores, se o seu nome era citado ele nada tinha a ver com isso.

Citado para voltar a ser presidente da Assembleia.

Sim. Contei-lhe nesses minutos que era casado com uma neta de Vitorino Nemésio, um ilustre açoriano. Uma conversa tranquila. Depois, na segunda-feira, logo após a primeira votação, um deputado do PSD que estava próximo de Mota Amaral enviou-me um SMS a dizer que o distinto personagem fizera uma cruz fora do quadrado. Passou-se o mesmo com o Dr. Guilherme Silva, também ele aspirava a ser presidente depois de eu cair em desgraça. E poderia continuar a falar desse tipo de traições, a de António Capucho, a quem tratava por amigo, e sem que eu tenha percebido a razão começou a dizer mal de mim.  

Como foi o seu caminho para casa?

Difícil viagem, mas ao chegar a casa tive a maior distinção que poderia sonhar. A minha mulher fora assistir à sessão no Parlamento e foi-se embora mais cedo do que eu. Disse-me o que me ficará até ao último segundo dos meus dias: tu foste um grande senhor.

E no dia a seguir votou em Assunção Esteves.

Cheguei a sugerir o seu nome ao Dr. Passos Coelho. Não me esquecerei também que no seu discurso de vitória, para mágoa minha (mais uma), não referiu uma única vez o meu nome. Não teria ficado mal ter dito no seu discurso de posse que ali estava um homem digno, mas não houve uma única palavra a meu respeito. Foi precisamente naquele momento que decidi não poder ficar na Assembleia nem mais um minuto.

Em quem vai votar nestas presidenciais?

Conheço muitos dos candidatos. Fui abordado direta ou indiretamente por cinco, mas tanto para as legislativas como para as presidenciais não apoiarei ninguém. Tenho a responsabilidade perante a AMI e perante a minha família. Não anunciarei qualquer tipo de apoio.

Tem ainda a memória muito viva.

As presidenciais foram uma grande aventura. A 15 dias das eleições as empresas de sondagens davam-me três por cento, acabei com 14,1. Quase 600 mil pessoas confiaram-me o seu voto. Sem apoios. E várias pessoas saíram do barco em andamento, a proximidade de um fracasso faz os ratos abandonar os navios. E já que me dá a oportunidade de pela primeira vez explicar tudo, vou-lhe contar outro episódio.

Claro.

Na noite eleitoral, quando foi confirmada a vitória de Cavaco Silva, telefonei-lhe para o felicitar. Agradeceu-me e afirmou que nesse dia havia dois vencedores: ‘eu porque fui reeleito e o senhor porque teve um resultado espantoso’. E uns minutos depois, para meu grande espanto, o professor Cavaco Silva faz um discurso de puro ressentimento, um ataque feroz a todos os candidatos, um ataque em que colocava todos no mesmo saco. Tenho a minha consciência tranquila e outros talvez não tenham. Era convidado muitas vezes para jantar em Belém ou no Palácio da Ajuda, deixei de ir. Fui ostracizado, foi o preço a pagar. O preço que paguei, o preço que a AMI pagou, o preço que a minha família pagou. Não há mais nada que possa dizer.

O senhor conheceu a perversidade de muito perto, vê-a nos campos de morte. A desilusão com o ser humano retirou-lhe a vontade de continuar a trabalhar para os outros?

Não, de todo. Isso faz parte do meu código genético. Via a minha mãe recolher miúdos de rua em Luanda, a dar-lhes banho, a vesti-los com as nossas roupas, a inscreve-los em escolas. Eu e os meus irmãos temos essa lição de vida…

Como é que ela se chamava?

Maria Alice. Regressei aos campos de morte, aos lugares em que precisam de mim. Mantenho o meu ideal de vida, sempre.

Lembra-se da voz dela?

De minha mãe? Perfeitamente. A voz é a primeira coisa que se esquece, bem verdade. Mas lembro-me. A minha mãe era a doçura, a proteção. Dizia-me que preferia ver qualquer um dos cinco filhos morto a vê-lo ladrão. E a outra coisa que nos dizia era para não sermos cobardes, para nunca batermos primeiro mas se alguém nos batesse… Não podíamos fugir, devíamos enfrentar.

E o seu pai?

Era o homem das regras, dos horários, da disciplina, dos valores, de uma família tradicional do Douro. Recordo que nos dizia sempre para não andarmos descalços em Luanda, mas numa tarde qualquer tínhamos tirado os sapatos e as meias e subido para cima de uma árvore. O pai passou no jeep e só nos disse para subir. Fomos diretos a casa, mandou-nos para o escritório e bateu-nos com o cinto. Nenhum de nós voltou a tirar os sapatos e as meias no meio da rua.

Costuma dizer que entre o herói e o cobarde a diferença é muito ténue.

Ou entre a loucura e a razão.

Até onde é que vai a loucura humana?

Já senti que estava a passar essa fronteira. Não sei, sinceramente. O instinto comanda-nos, muitas vezes comandou-me. Quando em 1982, recebo um telefonema dos Médicos sem Fronteiras para ir imediatamente para Beirute, disse-lhes que sim por instinto. Não via os meus filhos há semanas; acabara de chegar a Bruxelas para os ver e resolvi partir pois o cirurgião que lá estava entrara em pânico – a minha mulher era belga, a minha filha tinha dois meses e o meu mais velho dois anos.

É possível alguém que nunca passou por bombardeamentos imaginar o que são?

Talvez não seja. Os bombardeamentos à noite são os piores. Saí de Beirute com uma úlcera duodenal do stress, tratei-a empiricamente, claro. Durante o dia consegue-se controlar, vemos para que áreas da cidade os aviões estão a apontar, agora de noite não, só percebemos as bombas depois de caírem, resta-nos calcular e esperar que a próxima não nos caia em cima da cabeça.

Resta-lhe desafiar a morte.

E houve momentos em que esteve muito próxima.

Recordou-se de um episódio muito concreto.

Acabara de completar 30 anos e um sniper atirou-me à cabeça. Regressava de um hospital subterrâneo para um T0 onde dormia, a noite estava cerrada e eu caminhava no meio da estrada, senti a bala raspar a minha cabeça no lado esquerdo.

Também em Beirute?

Sim, em Beirute. Saltei para o lado direito da rua, fi-lo por instinto e salvei-me porque me deixou de ver, estava num telhado do lado direito. Naqueles segundos julguei que chegara ao fim, pensei que iam encontrar-me no dia seguinte num charco de sangue e que ia deixar um menino de dois anos e uma menina de dois meses. Pensei que era um grande estúpido porque tinha a vida à frente e preferi armar-me em herói, que grande estúpido. Quando passou, voltei ao mesmo, como se tudo tivesse ficado esquecido.

Quantas mortes os seus olhos já viram?

Muita morte, mas também viram muita esperança. Vi tantos mortos na fronteira entre o Ruanda e o Zaire, em 1984. Sempre tive a perfeita noção da minha finitude, sempre.

Não a receia.

Não receio a morte. Estou à espera dela e ela há de chegar no momento que tiver de chegar.

E ainda consegue comover-se com o sofrimento das pessoas?

Sem dúvida. Lembro-me do Sebastião Salgado chegar ao nosso acampamento em Quibumba (Angola), a chorar. Acabara de presenciar a morte de uma mãe com cinco filhotes de volta dela, veio-nos pedir se não podíamos recolher aqueles cinco órfãos. Como não sofrermos? Tenho um coração mole, sofro desde que me lembro. Em criança o filme que mais me marcou foi Marcelino, Pão e Vinho; saí de um cinema de Luanda pela mão do meu pai a chorar baba e ranho. Não é a insensibilidade que nos faz fortes, pelo contrário.

Há alguma imagem que não lhe saia da cabeça?

Quando me deito à noite e fecho os olhos, muitos filmes passam por mim. Uma das imagens que não me sai da cabeça é a de uma menina de oito anos, vítima de um bombardeamento durante a guerra Irão-Iraque; tinha o corpo 90 por cento queimado. Estava por horas, sabia que não demoraria a começar a inchar. Eu tinha no bolso das calças uma pomada para queimaduras pequenas (género Halibut), não tinha mais nada, mas estendi-lhe um lençol branco para se deitar e despejei-lhe todo o tubo da pomada na carita dela. Fiquei ali uns minutos, ficámos. A idade da inocência da humanidade perdeu-se.

Que consequências podem ter estes atentados em Paris?

Se houver mais um ou dois atentados do género, o que é provável, isso dará uma força tremenda aos partidos xenófobos e fascistas. O acordo Schengen está por um fio. A Europa não esteve à altura do tempo. Como foi possível não montar uma estrutura que recebesse os refugiados evitando o espetáculo que pensámos que não seria possível voltar a ver na Europa?

Tem uma definição precisa para caos?

O caos é uma situação em que a pessoa sabe que se acontece alguma coisa não há nada que lhe possa valer. Tive duas situações assim: uma em Mogadíscio, na Somália, em 1992. Não havia autoridade, estava submetido ao arbítrio de quem estivesse com uma metralhadora. Outra, antes dessa, no Irão, em 1981. Cenas de um total arbítrio; ainda hoje não sei como não morri ou apodreci numa prisão em Teerão.

Com tantas missões, viagens e países questiono-me se o senhor tem uma casa que sinta como casa. Onde é que se sente realmente em casa?

É uma pergunta difícil. Fico sempre muito feliz quando regresso a esta minha casa, aqui está a minha mulher e a minha filha mais nova. Costumo dizer que a minha casa é em qualquer parte do mundo e em nenhum lugar. Digo à minha mulher que se morrer numa missão não quero que o meu corpo volte, devo ficar sepultado onde morrer. Geneticamente já sou portador de uma plurinacionalidade – sou português, mas no lado materno tenho origensholandesas, francesas, brasileiras, de Cabinda.

Imagina um lugar que fosse seu?

Imagino. Um lugar que fosse meu teria de ser numa ilha imaginária, no cruzamento entre a Europa, o Brasil e Angola. De resto, mais nada. Sabe, conheço o mundo todo, mais de 180 países. Gostava ainda de ver a Antártida, a Sibéria e o Japão profundo, depois posso ir-me embora.

Faria essas viagens com a Luísa?

Sou crente e peço a Deus que me leve primeiro do que ela. Claro que as faria com ela.

Não perdeu o jeito de rezar?

Rezo todos os dias ao meu padrinho, Jesus é o meu padrinho de nascimento. Sei poucas coisas na minha vida, mas de uma sei com toda a certeza, que era com ela próxima que eu gostaria de morrer. Acredito no amor. Os meus pais estão juntos numa campa perpétua, aqui em Lisboa. Sabe como eu quero acabar a minha vida? A passear com a Luísa, devagarinho, a ver e a parar – ‘olha Luísa, isto aqui é bonito, vamos parar dois dias’. Sempre devagarinho, sem pressas, gostaria antes de me ir embora de lhe dar tempo. Depois parávamos e comíamos o que nos apetecesse. Ela irrita-se muito comigo. Está sempre a dizer que eu não como a comida, engulo-a.   

Já leu a obra de Vitorino Nemésio?

Meu querido amigo, vou ser honesto consigo. Quando conheci a Luísa ela ofereceu-me um livro do avô. Bem, deixe-me dizer que entre os 12 e os 34 anos só estudei em francês, praticamente não tinha referências portuguesas. Quando me apresentaram a Luísa na AMI (ela foi das primeiras a entrar), disseram-me que era a neta de Vitorino Nemésio, perguntei logo quem era o Vitorino Nemésio? Comecei a ler o Mau Tempo no Canal e a minha bagagem vocabular no português não me permitiu lê-lo sem um dicionário ao lado.

A primeira vez que vê Portugal continental foi já depois do 25 de Abril.

Foi em 1975. Apanhei o comboio em Bruxelas para Paris, depois de Paris para Lisboa. Ouvia falar em Portugal pelo meu pai, estava na janela do comboio e estive horas a ver o país que considerava meu, uma sensação estranha e maravilhosa. Era português, sempre fui português, mesmo quando ainda não conhecia este lugar. Acredito na integridade, na exemplaridade, no amor por Portugal. Vivi 20 anos em Bruxelas, os meus dois filhos mais velhos nasceram belgas, fui casado com uma senhora belga e nunca quis a dupla nacionalidade.

Porque não o fez?

Porque sei que iria magoar o meu pai.

Como é que gostaria que os seus filhos o recordassem?

Todos os meus quatro filhos adormeceram sempre ao som da minha voz e das histórias que inventava para eles. Gostava que me recordassem como o seu contador de histórias, um pai corajoso, que ousou enfrentar dificuldades, um pai que não teve medo. O medo paralisa, contamina. Apesar das minhas ausências, gostaria que me recordassem assim. 

As ausências pesaram na vossa relação?

A minha filha Leonor, que está a fazer um mestrado fora do país, sempre disse que o pai era um avião.

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