Entre ficção e suspense

Tal como num filme de ‘suspense’, quotidianamente assistimos à degradação inexorável da situação da Grécia (e, em boa parte também, da sustentabilidade das economias do sul da Europa) enquanto, em sentido contrário, vão adquirindo maior viabilidade as condições para uma mudança do receituário até agora imposto…

questão relevante é a de saber qual dos processos se afirmará primeiro, sendo óbvio que o desfecho de qualquer desses processos condicionará definitivamente o outro.

em relação à grécia, e infelizmente, ou surge qualquer decisão – que, neste momento, ninguém é capaz de antecipar – capaz de afastar o país do destino desastroso que, de há muito, lhe vem sendo apontado (mesmo por muitos dos seus ‘salvadores’ oficiais) ou a ‘vítima’ já terá sido ‘baleada’ quando as forças de intervenção chegarem ao local do crime.

no momento em que escrevo, a situação que prevalece é a de académicos, políticos, economistas e comentadores, gente mais ou menos reputada, já não discutirem as condições de recuperação da crise e se entreterem, quase diletantemente, a debater as consequências da, cada vez mais, provável saída forçada da grécia da moeda comum, sobretudo para a ‘estabilidade da zona euro’. e assim se vão esmiuçando cenários e hipóteses que vão alimentando, cada dia de forma mais convergente, a convicção colectiva de que nada de muito grave acontecerá na prática. aos poucos, um cenário completamente impensável há dois ou três anos – a queda de um país da europa e da zona euro numa situação de ruína económica absoluta, de total desagregação social e de desorientação política – vai sendo calmamente debatido nos jornais, nas entrevistas e nas conferências como se de um assunto corrente se tratasse. até mesmo por parte de membros do conselho de governadores do banco central europeu…

entre os muitíssimos factos estranhos a que temos vindo a assistir, sobressai esta onda colectiva de pensamento único, assente numa espécie de inevitabilidade ou destino fatal. sendo que, na realidade, ela resulta afinal de opções de política muito concretas, ao que acresce a permanente incapacidade para antecipar e prever – vejam-se a convicção com que se afirmou que os ataques às dívidas soberanas se circunscreveriam a um problema pontual grego ou a surpresa com que se constata, mês após mês, que as restrições orçamentais aplicadas com prazos apertados e regras cegas provocam recessão económica e desemprego; os exemplos abundam, mas não parecem afectar a crença de que, desta vez, a previsão vai funcionar… só que, por cada ‘nova vez’, o problema aumenta e com ele o risco de que tudo se desmorone…

é claro que, a pouco e pouco, a agudização das doenças que a ‘receita’ se propunha tratar acaba por ir alimentando a alternância política, inclusive nos países liderantes. a nível do parlamento europeu, e enquanto relatora, acabei de conseguir fazer aprovar no comité económico e monetário propostas de legislação para a constituição de um novo instrumento de apoio ao investimento, o qual deverá mobilizar anualmente 1% do pib da união europeia durante 10 anos, acrescida da obrigação de a comissão europeia concretizar o calendário de criação de euro-obrigações, preparar um fundo de gestão comum dos excessos de dívida (em relação aos 60% detidos pelos diversos países da zona euro) e integrar nas suas recomendações em matéria de disciplina orçamental as orientações decorrentes do diagnóstico sobre as fragilidades estruturais, nomeadamente em matéria de competitividade, que o país tem de ultrapassar…

temas como estes eram insusceptíveis de abordagem – e muito menos de aprovação – há alguns meses. ou seja, embora muito lentamente, algo muda. a questão que fica por saber é se uma mudança substantiva se virá a manifestar a tempo de evitar um desastre maior. porque, tal como tantas outras previsões que têm saído erradas, também ‘a saída organizada do euro’ por parte da grécia só é um processo pacífico no mundo de ficção em que temos vindo a viver…

a breve trecho, veremos se vai sair algo de concreto do conselho informal ‘para o crescimento’ a ter lugar na próxima semana e acolhendo, pela primeira vez, françois hollande. ou, pelo menos, se a atmosfera dará alguma mostra de despoluição austeritarista…

*economista e eurodeputada