Em paz: Ana Vieira, uma arte jovem

1940-2016. A artista tinha 74 anos e morreu na madrugada da passada segunda-feira em Lisboa, vítima de cancro.

Admirada nesse regime de quase segredo por aqueles que mostram atenção e cuidam dos caminhos que rasga a arte neste país, a artista plástica Ana Vieira deixou o exemplo de uma presença inspiradora nessa margem inquieta «com uma obra completamente singular» e de «grande intensidade», segundo o amigo e colaborador, Jorge Silva Melo, cruzando diversas disciplinas e recusando a facilidade comercial, o que a posicionou entre «um grupo prestigiado e restrito de mulheres artistas que, em Portugal, souberam e sabem realizar uma obra artística sem cedências de qualidade», como assinalou no Público a crítica de arte Luísa Soares de Oliveira. 

José Mário Brandão, responsável pela galeria que a representava, a Graça Brandão, Ana Vieira encontrava-se hospitalizada há algum tempo, e desaparece numa altura em que uma das suas obras mais recentes, A arte da Fuga, foi apresentada durante a feira ARCO Madrid, que encerrou no domingo passado na capital espanhola. «Perdemos uma grande artista e uma grande amiga», comentou o galerista à Lusa.

No trabalho da artista – nascida  na terra da mãe, Coimbra, em 1940, mas que cresceu na Ilha de São Miguel, Açores, terra do pai – a indagação sobre a condição da mulher surge constantemente, tantas vezes no papel da estranha, uma figura em conflito com um ambiente sociocultural que condena a mulher a um papel secundário. O diretor dos Artistas Unidos lamentou que a obra de Ana Vieira não tenha obtido o reconhecimento que merecia no seu país, mas foi João Fernandes – diretor artístico do Museu Serralves na altura em que ali se realizou a primeira exposição antológica da artista (1998-99) – quem fez questão de frisar as poucas oportunidades que foram dadas a Portugal para ficar a conhecer a obra de uma das suas «artistas mais fascinantes». 

Num depoimento que enviou ao Público,  o atual subdiretor artístico do Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, em Madrid, lembra que se Ana Vieira «cultivava o seu mistério» o certo é que sofreu «com a desatenção e o desamor que o país sempre dedicou aos seus artistas». Revela ainda como, nos últimos anos, a artista que considera indispensável a qualquer história da arte do nosso tempo ou história das mulheres no nosso país, «vivia indignada com a pobreza de espírito revelada pelos governantes no seu constante esquecimento e menorização das artes».

No começo dos anos 60, Ana Vieira mudou-se para Lisboa para frequentar a Escola de Belas-Artes, onde se formou em 1965. Entretanto conhecia aquele que seria o seu marido, o pintor Eduardo Nery. Era mãe de Paula Nery e do arquiteto Miguel Nery. Começou a expor o seu trabalhou ainda em 65, realizando a primeira mostra individual em 1968, intitulada Imagens Ausentes, que revelou o seu interesse em superar a dimensão estritamente pictórica do trabalho criativo, abrindo-se à instalação. Nos seus trabalhos, viria a experimentar uma grande diversidade de materiais e dispositivos, como biombos e elementos em madeira, peças de mobiliário, tecido ou vidro espelhado, entre outros.

Em 1977, participou na exposição de vanguarda Alternativa Zero, em Lisboa,  organizada por Ernesto de Sousa, à qual se atribui o mérito de ter  introduzido a contemporaneidade no espaço artístico português. Em 1991, recebeu o prémio da Associação Internacional de Críticos de Arte/Secretaria de Estado da Cultura, o mais importante prémio de carreira em Portugal. Em 2010-2011, o Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão da Fundação Gulbenkian, em colaboração com o Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, apresentou a maior retrospetiva na carreira da artista.

A inconformidade, o sentido radical da sua obra não impediu que, através dos anos, muitas das principais instituições e autores portugueses tenham celebrado o seu trabalho, mas Ana Vieira «nunca deixou de ser uma artista de artistas», como sublinhou João Fernandes, e o seu sofrimento talvez tenha sido maior num tempo que pede aos filhos para esquecerem as suas ambições artísticas e enveredarem por áreas mais sérias, mais úteis ao país.

Uma arte jovem

«Acha?» era a questão que a Ana colocava quando lhe fazia alguma sugestão ou comentava algum trabalho. 
Um dia perguntou-me se sabia quem poderia  imprimir uma fotos em tela. Não compreendi muito bem o que é que ela queria. Esqueci-me que a Ana, embora não sendo uma fotógrafa, foi uma das artistas que sempre utilizou a fotografia, manipulando-a.

Mais tarde pediu-me para ir a sua casa ver o que já tinha feito para a exposição. Quando cheguei a casa dela, cansado de subir aquelas escadas, sofri um soco no estômago, tive de me sentar  e fiquei completamente maravilhado com o que vi. Aconteceu aquilo  que acontece quando descubro um trabalho ‘fresco’ que me surpreende e me enche a cabeça de interrogações. 

A Ana sabia que eu só trabalho com jovens artistas e sabia muito bem que ela era um deles.
José Mário Brandão (galerista que representava Ana Vieira)