Ucrânia leva música anti-Rússia ao Eurofestival

“Quando os estranhos chegam/ invadem a tua casa,/ matam todos/ e dizem ‘não somos culpados’”.

Ucrânia leva música anti-Rússia ao Eurofestival

É este o início da música “1944”, dedicada à ordem de José Estaline para a deportação de dezenas de milhares de tártaros da Crimeia para a Síbéria. Susana Jamaladinova, estrela pop de etnia tártara, escreveu-a num “estado de impotência”, após a anexação russa da Península da Crimeia, em 2014.

Fê-lo em memória da bisavó, “a menina sem campa” que há mais de 70 anos não resistiu à violenta marcha de milhares de quilómetros imposta pelo ditador comunista da União Soviética. “Foi difícil para mim recuperar estas memórias outra vez, mas percebi que era algo necessário neste momento. Os tártaros da Crimeia estão desesperados e precisam de apoio”, disse a artista conhecida por Jamala em entrevista à “AFP”, após se sagrar vencedora da meia-final do festival da canção ucraniano.

A música, que tem partes em inglês e outras em tártaro, não tem qualquer referência a Vladimir Putin nem à decisão que tomou há dois anos na sequência de uma revolução ucraniana que teve como objetivo reduzir a influência do ex-patrono soviético.

Mas ninguém a consegue dissociar da atualidade: os ucranianos foram rápidos a explicar nas redes sociais que “sempre que Jamala diz Estaline deve ouvir-se Putin” e apesar de não ter sido a favorita do júri, Jamala viria mesmo a vencer a final nacional devido ao voto popular; do outro lado da fronteira também não há dúvidas de que se trata “de mais uma provocação à Rússia”, como disse o deputado e líder da comissão da política de informação da Duma, Vadim Dengin.

Mais do que a provocação, a intenção de Jamala é voltar a chamar à atenção para uma anexação ilegal que vai caindo no esquecimento à medida que o conflito separatista na Ucrânia perde mediatismo com o envolvimento da Rússia noutros conflitos internacionais. “Os tártaros estão sob uma pressão imensa, alguns desapareceram sem deixar rasto e isso é assustador”, disse à “Rádio Europa Livre”.

Como representante da Ucrânia no Festival Eurovisão da Canção, que se realizará em Estocolmo no dia 14 de maio, Jamala já tem como garantido que receberá zero pontos da Rússia. Mas pode aumentar as hipóteses de vitória do seu país com a solidariedade de outras antigas repúblicas soviéticas que há décadas tentam escapar da influência moscovita.

Mas esses exemplos também indicam que Jamala pode nem chegar a Estocolmo, pelo menos sem maquilhar a carga política do seu tema. As regras da eurovisão impedem que os países utilizem o festival para difundir mensagens políticas e nos últimos anos vários temas foram censurados pela organização do espetáculo.

Quase sempre com a Rússia envolvida, diga-se. Foi assim em 2009, um ano depois de Putin ter anexado duas regiões da Geórgia. O tema “We Don’t Wanna Put In”, escolhido pela maioria dos georgianos para representar o país no palco europeu, foi rejeitado pela mensagem que nem o título conseguia esconder. Noutro caso, um ataque à Turquia pelo genocídio de arménios durante a Primeira Guerra Mundial, foi apenas camuflado depois de o autor ser convencido a trocar o título da música de “Don’t Deny” (Não Negues) para “Face The Shadow” (Enfrenta a Sombra).

A própria Ucrânia já viveu a experiência quando a banda rap GreenJolly foi obrigada a mudar partes da música “Razom Nas Bahato”, que meses antes se tinha tornado numa espécie de hino oficial da Revolução Laranja (que, curiosamente, tinha como alvo a influência russa). A organização do festival já disse que a música de Jamala será analisada, tal como todas as outras, numa reunião a 14 de março. Aí saberemos se “1944” será total ou parcialmente anexada. Ou se Jamala consegue que a agressão russa na Ucrânia volte a ser tema na Europa.