Quinta da Marinha – Uma aldeia de luxo ilegal

O aldeamento turístico da Quinta da Marinha, em Cascais, é conhecido pelas suas moradias distintas e pela qualidade de vida acima da média, mas é um luxo clandestino. Atrás das cortinas de aparências há várias construções ilegais, guerras de condomínio e muito descontentamento com a administração.

Quinta da Marinha – Uma aldeia de luxo ilegal

Há proprietários de casas que recusam pagar as prestações por não terem os serviços exclusivos do aldeamento e há outros que fazem nascer muros, ano após ano, para isolar as suas habitações e jardins, até aqui a descoberto. Tudo foi subvertido num aldeamento turístico onde o que há mais são residências próprias.  Na Justiça, correm pelo menos 25 ações: duas contra a sociedade exploradora, a Guia, S.A., e 23 colocadas por esta contra os donos de casas com pagamentos em atraso.

Documentos a que o SOL teve acesso comprovam que as divergências passam pela obrigação dos condóminos em pagar grandes quantias à sociedade exploradora – nalguns casos, cerca de dois mil euros trimestrais -, pela ausência de serviços que estavam contratualizados no aldeamento turístico e ainda pelo nascimento de um hotel em zonas que até aí eram comuns (que incluíam espaços como os courts de ténis e as piscinas).

Queixas na Câmara e no Instituto do Turismo

São vários os que se queixam de ficarem sem as comodidades das zonas comuns, apesar de continuarem a pagar por elas. Pagam à administração da Guia pela recolha do lixo e quem o recolhe são, na verdade, os serviços municipais e pagam pelo acesso à piscina, quando esta está reservada aos hóspedes do hotel Martinhal.

Quem acompanha este processo de perto refere-se muitas vezes ao aldeamento como o “mais rico bairro clandestino da Europa”.

O mal-estar neste aldeamento da Quinta da Marinha já chegou ao conhecimento da Câmara Municipal de Cascais e do Instituto do Turismo de Portugal. Numa das queixas é mesmo pedida a cessação da licença para o funcionamento do aldeamento turístico por este “não obedecer aos requisitos legais”.

O presidente da autarquia confirma que está a par dos diversos problemas, alertando que muitos deles são de natureza particular e que, por isso, a Câmara nada pode fazer. Sobre as situações em que tem competência, garante que a autarquia tenta responder travando novas ilegalidades e solucionando as que vêm do passado. “É completamente impossível legalizar tudo o que não está legal”, confessa Carlos Carreiras.

O autarca lembra um dos últimos casos em que a Câmara teve de atuar. Houve uma tentativa por parte da Guia, S.A. para desanexar cinco moradias da sua propriedade que estão naquele aldeamento, pedindo para isso a propriedade horizontal. O objetivo seria vender os imóveis para habitação, apesar de terem sido construídos e licenciados para turismo. O pedido foi indeferido. “A administração, com isto, estaria a desmembrar o próprio aldeamento turístico. Porque quando as casas foram construídas era para servirem de alternativa aos quartos do hotel para determinados clientes. Não era para serem vendidas para habitação”, explica Carlos Carreiras.

Um aldeamento turístico que há muito deixou de o ser

Foi construído na década de 80 para ser um aldeamento de turismo e constituído oficialmente 18 anos mais tarde. O objetivo era que uma parte das casas fosse destinada ao turismo e outra a habitação, e que no meio existissem espaços comuns. Mas hoje o turismo é apenas uma pequena parte e o aldeamento é, na prática, um imenso bairro urbano.

Segundo contaram ao SOL alguns residentes, há casos de imóveis que a sociedade Guia S.A. recusou explorar para fins turísticos, ao contrário do definido no documento elaborado aquando da constituição do aldeamento.  Nesse ‘título constitutivo’, esse era um dos direitos dos proprietários: a entrega da casa para exploração turística quando entendessem.

Os proprietários que, sob anonimato, aceitaram falar com o SOL não têm dúvidas de que o aldeamento já há muito que está “desmembrado”. E que a única característica que mantém em relação ao que foi definido inicialmente é o valor elevado cobrado pelo condomínio.

“Não se justifica pagar o que se paga porque este é hoje um bairro comum. A segurança prestada pela Guia é tão boa que cada morador tem alarmes particulares, a rega e o tratamento de árvores não funciona e cada um paga individualmente essas despesas. Quem distribui o correio são os CTT e o lixo é recolhido pela Câmara. Então, por que temos de pagar todos estes serviços à Guia?” – questiona uma das moradoras. No seu caso, as despesas trimestrais são cerca de 600 euros.

Além dos serviços, os espaços de lazer também foram reduzidos drasticamente quando há poucos anos o grupo Onyria, de José Carlos Pinto Coelho, construiu o Hotel Onyria. Quem ali mora há mais de 20 anos recorda que a unidade nasceu exatamente onde estava uma piscina, dois courts de ténis e um pequeno campo de golfe, todos acessíveis aos moradores.

Hoje, se quiserem usar a outra piscina que restou, garantem, têm de pagar. E a versão é confirmada pelos avisos que têm sido colocados em torno do recinto, nos quais é referido que o equipamento está ao serviço exclusivo do hotel, agora denominado Martinhal (foi entretanto vendido pelo grupo Onyria, mudando o nome).

Outra das situações que têm provocado indignação é a interdição do parque infantil junto ao hotel, no local onde antes estava um estacionamento comum. Segundo os panfletos do Martinhal, quem quiser levar as crianças àquele espaço tem de pagar no mínimo 20 euros por dia, mesmo os moradores.

Os residentes dizem considerar-se turistas num aldeamento que pagam a preço de ouro. E adiantam mesmo que, neste momento, dos espaços comuns praticamente só lhes resta as estradas – transitáveis por qualquer pessoa, uma vez que, ao contrário de outros aldeamentos, não existe portaria com segurança.

Em declarações ao SOL, o responsável pelo Hotel Martinhal, Roman Stern, disse estar também a par de alguns destes problemas. Salientando o facto de a marca ter chegado ao aldeamento apenas em março, Stern admite que sejam feitos alguns ajustamentos de forma a que os serviços prestados pela unidade possam ser atrativos para os moradores: “O Grupo Martinhal nunca deixou de estar disponível para – ponderando os diversos interesses em presença – contribuir na procura de soluções que possam dar adequada resposta às questões de interesse geral”.

Já a Guia S.A. defende que não existem limitações quanto ao uso de “instalações e equipamentos comuns do aldeamento turístico previstas no título constitutivo”. Mas deixa a garantia de que, se houver insatisfações, “procurará sempre soluções para servir melhor os clientes”.

Denúncia refere que dinheiro é ‘canalizado’ para hotel

No orçamento de 2010 do aldeamento, entre as despesas apresentadas pela Guia constavam serviços prestados por terceiros – como a recolha do lixo, que é feita pela Câmara. Desde aí que os valores pagos trimestralmente pelos moradores não são alterados, o que indicia que tais serviços continuam a ser cobrados.

O presidente do Conselho de Administração da Guia, José Carlos Pinto Coelho, refere em resposta ao SOL que as contas do aldeamento são disponibilizadas anualmente aos proprietários, adiantando que os pareceres do revisor oficial de contas têm “concluído com a opinião de que ‘as contas anuais (…) apresentam de forma verdadeira e apropriada, e todos os aspetos materialmente relevantes, o resultado das operações e a execução orçamental do aldeamento turístico”.

Adianta ainda que a comparticipação dos moradores nas despesas comuns é feita “na proporção do valor relativo das suas unidades de alojamento como resulta da lei e do título constitutivo do aldeamento”. Sem desmentir de forma explícita a informação de que os valores cobrados pela Guia englobam serviços não prestados, Pinto Coelho, ex-presidente da Confederação do Turismo de Portugal, refere apenas que “nem nas contas anuais do aldeamento, nem nas faturas relativas às despesas comuns se faz menção a serviços de correios e recolha de lixo”.

Numa das queixas subscritas por moradores que deu entrada na Câmara Municipal de Cascais, pode ler-se que o dinheiro cobrado aos residentes não tem destino aparente, pelo que poderá estar a ser canalizado para as partes do aldeamento pertencentes à Guia – ou seja, as únicas onde ainda há o turismo. “O aldeamento está ou esteve dividido em três: aldeamento A, B e C. Sendo certo que o aldeamento B é o único que pertence exclusivamente à Guia e que é utilizado para arrendamento de hóspedes do hotel. E aí sim, como é natural, a Guia tem despesas de manutenção dos jardins”, dizem, adiantando que tal custo não pode “ser imputado aos restantes proprietários”, nomeadamente aos do aldeamento A e C.

A cobrança de montantes por serviços não prestados ou sem razão aparente é um dos assuntos em que a Câmara não tem qualquer competência, explica Carlos Carreiras, explicando assim por que a ausência de intervenção da autarquia: “São questões particulares”.

Já a Guia assegura que “todas as despesas são examinadas pelo Revisor Oficial de Contas […] não havendo qualquer fundamento para uma suspeita desse tipo, que sempre teria de considerar-se caluniosa”.

O Hotel que nasceu nas áreas comuns

Foi notícia em 2008 o início das obras no aldeamento para a construção do hotel Onyria. Segundo o Público referiu na altura, as máquinas chegaram sem qualquer autorização camarária ao local próximo do pavilhão de caça que o Rei D. Carlos ali mandou construir e começaram a escavar.

Com essas obras acabaram espaços como a piscina principal, os dois courts de ténis, a que se somam espaços como o restaurante e uma pequena mercearia. Na altura, o Grupo Ecológico de Cascais apresentou queixas ao Ministério Público e à autarquia.

Alguns anos depois, o hotel Onyria acabou por ser vendido aos atuais proprietários, passando a chamar-se hotel Martinhal.

O diferendo é de tal forma que a Guia não reconhece que a piscina, os courts de ténis, a mercearia e o Clubhouse (que sempre foram usados por todos) sejam  áreas comuns. “O título constitutivo do aldeamento turístico da Quinta da Marinha prevê a existência de 139 ‘frações imobiliárias’ para a instalação de ‘vilas’ com uma função ‘turístico/residencial’, três ‘frações imobiliárias’, todas propriedade da Guia, para instalação de, respetivamente, um  clubhouse, um minimercado e seis courts de ténis, bem como a existência de instalações e equipamentos comuns, constituídos por infraestruturas comuns, uma receção/portaria e uma piscina. O clubhouse, o minimercado e os courts de ténis previstos no título constitutivo nunca fizeram parte das instalações e equipamentos comuns, sendo propriedade da Guia”, diz fonte oficial da sociedade.

Construção não autorizada e vedações

Em diversos casos, os donos dos imóveis (descritos na caderneta predial como prédios urbanos) decidiram vedar os terrenos que lhes estão adstritos, ainda que o aldeamento considere que integram as partes comuns.

Sobretudo na Zona A, foram feitas diversas obras de ampliação de moradias sem autorização. Algumas continuam a ser feitas. 

A própria administração admite a existência destas situações, garantindo que sempre que teve suspeitas “participou oportunamente à Câmara e/ou à Polícia Municipal”.

Contactado pelo SOL, o Instituto do Turismo de Portugal não prestou qualquer esclarecimento.