Rui Vitória. O general familiar

Leva uma carreira de treinador com 14 anos. Por onde passou trabalhou com jovens e problemas financeiros, nunca tendo sido despedido. De médio defensivo no Vilafranquense, passou pelo Fátima, Paços de Ferreira e Vitória de Guimarães como técnico, até chegar este ano ao Benfica, onde se sagrou campeão. Vitória, o homem tranquilo e familiar, tem…

A vida é madrasta por vezes. “E foi assim de um momento para o outro, sem saber nem como nem porquê, que fiquei órfão”. Esta podia ser a entrada para um romance sobre alguém que ficou sem os pais num desastre de viação, em setembro de 2002, e que teve de aprender a sentir-se “de novo parte de um todo maior” que ele próprio. Na verdade, é o início do livro “A Arte da Guerra para Treinadores” (2014), uma adaptação da obra célebre do general chinês Sun Tzu, escrita pelo agora treinador e campeão pelo Benfica, Rui Vitória. Estranha-se que uma pessoa, ofuscada pelos holofotes mediáticos, tenha tido abertura suficiente para falar com o público sobre aquilo que lhe aconteceu poucos dias depois de ter começado a sua carreira de treinador – “tudo o que sempre sonhara” tal como queria a sua mãe. Mas não é estranho para Rui Vitória.

Começou aos 32 anos no Vila-franquense (na altura na II B) – já tinha passado lá oito anos a jogar a médio defensivo –, depois de, apenas uma semana antes, ainda calçar as chuteiras do Alcochetense da III Divisão, onde mesmo querendo não conseguiu voltar ao terreno de jogo após o trágico acidente, como relata na sua obra.

O ribatejano fez toda a sua formação naquela região. Ia com o pai, soldador da TAP, assistir aos jogos, e com nove anos começou a pisar os relvados: um princípio daquilo que estava destinado para a vida de Rui Vitória. Ser treinador veio com ele no berço. Isso e um conjunto de características que fazem dele um gentleman, segundo os mais próximos. “É um senhor, quer seja como jogador ou treinador”, começa por explicar Pedro Torrão, ex-jogador do Vila-franquense que partilhou o campo com Vitória na época de 1994/95. Rui era mais velho, tinham dez anos de diferença, um capitão de equipa “muito inteligente” e um jogador crucial na estratégia de jogo. Só tinha um defeito: “não gostava de jogar de cabeça”. Era mais de dar e receber. Dele guarda, não só a sua importância em campo, mas também um espírito positivo. “Aparecia sempre bem-disposto, dava-se bem com toda a gente”. Para Torrão, o sucesso desta época no Benfica, não veio de uma estrelinha da sorte, mas sim de uma carreira “a pulso” onde Vitória “ultrapassou todos os degraus”. E, para o técnico do Benfica, foram muitos os degraus.

Andou pela Escola Secundária D. Dinis, em Lisboa, e logo depois, após ter passado no exame de Matemática, entrou para a Faculdade de Motricidade Humana (FMH) para tirar o curso de Educação Física (com a duração de cinco anos), sem nunca deixar a atividade como jogador. A par disso foi crescendo a vontade de ser professor, uma vontade que começou aos 19 anos – quando estava no clube de Vila Franca, e também no Fátima, dava aulas na Escola Gago Coutinho, ao lado do seu eterno adjunto, amigo e colega Arnaldo Teixeira, e permaneceu no Fátima até chegar ao Paços de Ferreira (2010/2011), altura em que pediu uma licença sem vencimento. Esta profissão moldou-lhe a personalidade, os métodos de treino e a forma como olha para o futebol. “Creio que, por detrás de um grande treinador, como por detrás de um grande general, tem de estar, acima de tudo, uma grande pessoa”, escreve no seu livro. Duas características inerentes ao treinador do Benfica, como contam todas as pessoas com quem o B.I. falou.

Para perceber como é Vitória enquanto treinador e pessoa, será mais fácil olhar para como era visto dentro de uma escola. “Um professor de disciplina, cumpriu sempre todas as tarefas, nunca usou o facto de estar a treinar como desculpa. É uma pessoa de afetos. Nunca deu confiança a intrigas profissionais. E não me lembro de nenhum recurso, deu sempre notas justas”. É assim que Ana Simões, diretora da Escola Gago Coutinho na altura em que o técnico encarnado lecionava (esteve lá de 1998 a 2010), recorda um homem que foi fiel aos seus compromissos e que demonstrou ter uma postura tão correta que nem um trabalho de casa deixava de fazer. Rui chegou a ser coordenador de Educação Física e foi membro permanente  do Conselho Pedagógico.

Sobre o seu primeiro título nacional, Ana não tem dúvidas: “Não me admira nada aquilo que aconteceu. A postura dele agora já a tinha enquanto professor. Foi sempre pacífico num grupo com muitos homens [professores]”. Até porque Vitória, nunca esqueceu quem o acompanhou. “É um homem de família. Estão todos no pódio com ele”, remata.

O perfil sereno e organizado esteve então presente, quer fosse no ambiente escolar ou num clube de futebol. O Clube Desportivo de Fátima (CDF), que treinou durante quatro épocas (duas subidas e uma descida entre 2006 e 2010), foi o espaço perfeito para o ajudar a saber montar estratégias de jogo e a analisar bem o adversário. Mas também exigiu um maior sacrifício: decidiu fazer 200 quilómetros todos os dias para conseguir ser treinador/ professor. A solução? “Quando lhe apresentei o projeto ele estava a treinar o Benfica B [2005 a 2007] e disse-me que queria treinar seniores. Mas nós não queríamos que ele abdicasse de dar aulas. Comprámos uma carrinha de nove lugares, onde vinha com o Arnaldo Teixeira e mais uns jogadores de Alverca”, conta ao B.I. Luís Albuquerque, antigo presidente do CDF.

Vitória nunca perdeu a confiança do clube e chegou a ter o contrato renovado no ano em que desceram (época 2007/08), em que curiosamente eliminaram o Porto da Taça da Liga – muita observação e análise tática foram a receita. “Foi um ano dos oitenta aos oito. Ele colocou o lugar à disposição mas não deixámos. Tinha a noção da realidade e adaptava-se bem ao meio que o envolvi. Nessa época, já no final do campeonato, fui ao balneário e disse: podem ir jogadores embora, mas o treinador não”, afirma Luís Albuquerque. E não foi mesmo. O CDF obteve a melhor classificação de sempre (8º lugar) na segunda liga. O que só podia deixar boas memórias. “Sempre foi muito afável, até os jogadores que não jogavam gostavam dele. É um líder forte, sabia impor sem berrar e criou um grande grupo de trabalho”.

Desse grupo fazia parte Miguel Neves, extremo esquerdo, que fez muitas viagens com Vitória na altura em que o jogador estudava em Lisboa. Relembra-o como “um treinador tranquilo com uma relação próxima com os jogadores, mas que ‘dava com o chicote’ sempre que era preciso”. Lembra-se também que o ribatejano foi o primeiro a introduzir as novas tecnologias – algo de que não é fã, como afirmou em entrevista ao site zerozero em 2015 – para analisar a tática. “Ele ensinou-me muito taticamente, hoje em dia sei onde preciso estar e porquê”. Nessa altura, porém, Neves era mais desconfiado. “Na época da segunda liga em que não tínhamos ganho um jogo fora, na partida contra o Desportivo das Chaves, ele disse-me que eu ia marcar um golo. Não acreditei, e a verdade é que marquei. Foi uma grande festa”.

A veia de professor, essa, também lá estava. Rui gostava de trabalhar o espírito de grupo – em aniversários era “obrigatório haver frangos e minis” –, e Miguel lembra-se que, durante uma pré-época, todo o plantel foi para um auditório para desenhar o símbolo do CDF. O grupo vencedor ganharia “um prémio do outro mundo”. “Depois fomos treinar e o prémio foi não transportar a baliza. Obrigou-nos a interagir uns com os outros”. A arte de ensinar foi, portanto, colhendo os seus frutos.

Mas só em jantares de equipa é que Rui, o treinador e professor, se libertava mais. “Houve um jantar de equipa em que as pessoas estavam a comer e ele foi tocar numa bateria que lá estava. Tinha jeito. Depois pegámos num microfone e em guitarras e começamos a tocar”. O lado musical de Vitória foi sempre um dote escondido que só agora é que alguns com quem foi contactando começaram a descobrir, graças ao mediatismo que ganhou.

Mas a reserva do seu espaço pessoal, aliado a muito trabalho dentro de portas – sem dar “palmadinhas nas costas” – e ao lado humano de cada um, fazem parte do leque de armas que impôs em todos os seus clubes (ou “as suas tropas que vão para o campo de batalha”, como escreveu no ‘seu’ arte da guerra) que tem treinado ao longo de 14 anos de carreira, onde nunca foi despedido.

Seguiu-se o Paços de Ferreira (finalista vencido da Taça da Liga 2010/2011) e o Vitória de Guimarães (Taça de Portugal em 2013). E quem melhor para falar dos castores que o atual treinador Jorge Simão, que este ano disse que Vitória, técnico que admira por também “ter vindo de baixo” como ele, era um exemplo. “Revejo-me na conduta dele. De quem se preocupa com o que se passa na ‘sua casa’”. No clube da capital do móvel, Jorge passou por uma situação similar à de Vitória. Paulo Fonseca levou a equipa até á Liga dos Campeões, Jorge Jesus conquistou três títulos nacionais em seis anos pelo Benfica. “Consigo perceber o que ele passou, e senti desconfiança quando cheguei. O que é preciso para alterar isso? Apresentar resultados”. Os encarnados foram tricampeões, e o Paços ficou em sétimo lugar no campeonato, quase na Liga Europa.

Falta falar do Vitória no Vitória. Chegou a Guimarães em 2011, dois anos depois conquistaria a Taça de Portugal contra os encarnados. Potenciou jovens (André André do Porto, ou Paulo Oliveira do Sporting são só alguns) graças a muitos problemas financeiros. “Segundo o site ‘Transfermarkt’, o Rui foi o treinador que mais potenciou os seus ativos na época passada”, revela o professor da FMH Ricardo Duarte, que também é formador de treinadores e que tem acompanhado a carreira do técnico português. Para Ricardo Duarte, todo o percurso do treinador do Benfica, que teve o percurso académico como base muito importante e uma fidelidade inquebrável aos seus valores educacionais, fazem parte de uma maneira de ser que “fazia falta à classe do futebol”.

Pode não ser a história de uma personagem de um romance, mas Rui Vitória já tem um lugar num desporto onde o seu estilo de pensar, trabalhar e viver é caso raro. Talvez seja afinal essa a sua arte. A de ter erguido a cabeça depois da morte dos pais, de ter ido para a guerra com as suas tropas e ser um comandante familiar. Porque se a vida for madrasta, há mais que uma forma de ir à luta.