Em janeiro deste ano, quando foi recebido no Vaticano pelo Papa Francisco, o ator norte-americano Leonardo DiCaprio levou um presente na bagagem: o enorme livro então acabado de editar pela Taschen para celebrar o 5.º centenário da morte do pintor Hieronymus Bosch. Abrindo o volume na página que mostrava O Jardim das Delícias, DiCaprio revelou que em criança tinha uma reprodução da pintura perto do berço. Aos seus olhos, a estranha pintura representava «os excessos» da Humanidade. E não é caso para menos: embora tenha representado sobretudo temas religiosos, Bosch gostava de incluir piadas grosseiras, referências escatológicas e até metáforas de índole sexual nas suas obras. Num artigo publicado num número da revista Le Dossier de L’Art dedicado ao artista, o especialista Frédéric Elsig fala na «concepção pessoal do género humano fundamentalmente pessimista de Bosch».
O 5.º centenário da morte do pintor nascido nos Países Baixos tem sido assinalado, ao longo do ano, com uma série de iniciativas. Terminada a ambiciosa exposição no Museu Noordbrabants, em ‘s-Hertogenbosch (Holanda), a sua terra natal, abriu esta terça-feira no Prado, em Madrid, El Bosco – La exposición del V centenario, patente até 11 de setembro.
«Seria uma pena [una lastima] se não pudesses vir», diz a comissária da exposição em conversa telefónica com o SOL. Pilar Silva revela que de todas as pinturas do mestre, só três não se encontram em Madrid, pelo que esta constitui uma «oportunidade única» para conhecer a obra do pintor tardo-medieval nascido nos Países Baixos. E os portugueses até têm a sorte de a capital espanhola estar mesmo aqui ao lado.
De resto, já antes desta impressionante mostra o Prado era o melhor lugar do mundo para ver a pintura de Bosch, aquele onde se concentra a maior parte da sua magra produção conhecida: das menos de 30 obras que nos chegaram, seis pertencem ao Prado. «O Prado, e digo-o entre aspas, é a casa de Bosch», afirma Pilar Silva. «Entre os seis originais que possuímos, encontram-se três das suas obras mais importantes e representativas de diferentes fases: O Jardim das Delícias, A Adoração dos Magos, que se apresenta pela primeira vez depois do restauro, e O Carro de Feno. Por isso esta exposição só se podia fazer no Prado. Podem fazer outra, mas não ao mais alto nível, com todas as obras-primas reunidas».
O facto de haver tantas obras de Bosch nas coleções de Madrid deve-se à devoção do poderoso e taciturno Filipe II (Filipe I de Portugal) pela pintura do mestre holandês. Só de uma assentada, aquele que ficou conhecido como ‘Rey Papelero’ adquiriu seis obras de Bosch. E os espanhóis, por sua vez, ‘adotaram’ o pintor, tratando-o carinhosamente por ‘El Bosco’.
‘Infeliz aquele que se limita a imitar’
Na realidade, Bosch não era o apelido original do pintor, mas uma espécie de nome de guerra que utilizava na sua promoção internacional. Nascido Jeroen van Aeken (entre 1450 e 1455), o seu pai tinha uma oficina de pintura, onde o autor do Jardim das Delícias terá aprendido as técnicas e os segredos daquela arte. Charles de Mooji, diretor do Nordbrabants Museum – onde já este ano se realizou também uma grande exposição dedicada ao criador –, numa entrevista ao Le Dossier de l’Art, considerou: «Em Bois-le-Duc [o nome francês de ‘s-Hertogenbosch], os Bosch eram os únicos pintores, e possivelmente é essa a razão porque ele pôde desenvolver um estilo tão pessoal».
Isso não basta, porém, para explicar os feitos prodigiosos de Hieronymus, que criou imagens tão delirantes que Salvador Dalí o considerou um precursor da pintura onírica surrealista. Dele, o historiador da arte Ernst Gombrich disse: «Pela primeira e porventura única vez, um artista conseguiu dar uma forma concreta e tangível aos medos que assombravam as mentes do homem medieval».
Pilar Silva, a comissária da exposição de Madrid, prefere deixar claro que «Bosch era mais do que um criador de demónios». «Termos aqui reunidas todas as suas obras-primas permite ver um Bosch distinto, um detentor de uma grande originalidade técnica e um renovador da iconografia». De resto, o artista tinha uma consciência aguda dessa originalidade. Num desenho chamado ‘A floresta tem orelhas e a terra tem olhos’, inscreveu esta divisa: «Infeliz aquele que se limita a imitar e não desenvolve as suas próprias invenções».
A avaliar pela sua clientela, é provável que Bosch fosse já no seu tempo considerado um artista de exceção. «As pinturas de Bosch e do seu grupo são feitas para uma clientela muito restrita. Gente que tem a ver com os comerciantes, com a burocracia que andava ligada ao imperador e a uma série de príncipes», revela Joaquim Caetano, conservador-curador de pintura do Museu de Arte Antiga, que colaborou na realização do catálogo da exposição de Madrid. Paul Vandenbroeck, professor da Universidade de Lovaina e autor de um doutoramento sobre o pintor, refere a «celebridade de Hieronymus Bosch» e há outros indícios – como as avultadas somas que recebia ou os materiais preciosos que usava na composição das suas cores – que apontam para o seu sucesso profissional.
‘Isso não me preocupa nada’
Apesar de ser um feito quase irrepetível, a exposição do Prado não deixa de estar envolta em polémica. Em 2010 foi constituído um painel de especialistas para estudar a obra do pintor. Mas, ao fim de seis anos, os resultados não são os que todos esperavam. Segundo o Bosch Research Project, liderado por especialistas do Museu Noordbrabants, três pinturas que pertencem ao Prado não foram feitas pelo próprio Bosch, como se pensava, mas por seguidores. Uma delas é a famosa A Extração da Pedra da Loucura. Pilar Silva reage assim às conclusões dos holandeses: «Isso não me preocupa nada. Eles tiraram conclusões sem ter em conta importantes indícios documentais e dizem apenas ‘não nos parece’. Ora, isto não são argumentos científicos. Estou perfeitamente segura de que são Boschs autênticos», assegura a comissária. E acrescenta: «O Bosch Research Project reuniu uma quantidade de material incrível, mas, embora eu fizesse parte do comité científico, não me comunicaram nada».
Por estes dias Madrid está inundada de anúncios à mostra do Prado, e Pilar Silva revela que, apesar do preço elevado (16 euros para o público geral), há filas à porta do museu para ver a exposição. Por isso sugere a compra do bilhete pela internet, que permite evitar a espera. A comissária aconselha ainda a não deixar a visita para os últimos dias. «Nós, espanhóis, podemos ter três meses para ir a um sítio, mas só nos lembramos de ir no último dia, em cima da hora do fecho». Quando lhe dizemos que em Portugal se passa o mesmo, comenta: «Por isso é que somos irmãos, não é verdade?».