Correspondência de Abílio Mendes com Abel Salazar”, de Jaime Mendes, é um livro precioso naquilo que revela de uma época, e na forma que nos permite conhecer melhor homens que marcaram gerações, apesar do silêncio e da obscuridade da ditadura. Abel Salazar foi médico, professor, artista e homem de cultura e um dos maiores intelectuais portugueses da sua época. “Homens como estes morrem sempre cedo demais. No momento em que o seu pensamento atinge a plenitude, as suas vidas esfumam-se. Quando ainda têm uma infinidade de coisas a ver e a dizer, os olhos e a boca fecham-se. A única compensação que existe para este destino é a continuação pelas gerações mais novas a quem transmitem o ‘facho’”, é assim que o autor Jaime Mendes inicia o texto que resgata um conjunto de cartas entre o seu pai Abílio Mendes e Abel Salazar. Estas missivas, datadas de 1935 e 1936, entre um estudante de medicina e dirigente estudantil e o reputado mestre, permitem-nos sentir uma época e perceber melhor aqueles tempos. “Estas cartas vêm esclarecer, numa fase conturbada da sua vida académica, algumas facetas do seu caráter, como o amor à juventude e o entusiasmo n educação e formação, quase encarada como uma missão e um dever para com as gerações mais novas. Não menos importante, mostram o amor à liberdade e à democracia, assim como o relato da sua angústia perante a retaliação que lhe é feita proibindo-o de qualquer contacto com o meio académico”, alerta o autor. Numa das cartas, que constam do livro, Abel Salazar conta a Abílio Mendes que pediu para frequentar a biblioteca da Faculdade de Medicina, tendo sido proibido terminantemente de o fazer, por despacho de um ministro de um outro Salazar, António Oliveira de seu nome: “A separação de serviço do Professor Abel Salazar já determinada pelos inconvenientes da sua atuação política e social sobre a população escolar. Nestas condições não é de permitir que frequente os laboratórios e mais dependências universitárias”. O professor conta em carta a Abilio Mendes o ridículo das sucessivas proibições, algumas delas com justificações e receios absolutamente fantasiosas: “por outro lado, como me não me deixaram trabalhar numa litografia, sob o pretexto que aí estou organizando não sei que fantástico soviet litográfico, resolvi fazer dois cursos técnicos de histologia e citologia”, cursos esses que as autoridades também vão proibir.
Abel Salazar é expulso do ensino, por despacho de Oliveira Salazar, juntamente com outros nomes prestigiados da universidade portuguesa, cujo o único pecado era prezarem a liberdade e oporem-se à ditadura fascista. Nessa fornada a academia portuguesa é privada de pessoas como Aurélio Quintanilha, Rodrigues Lapa, Álvaro Lapa, General Norton de Matos, Sílvio Lima, entre outros.
Apesar de ser corrido da universidade, com outros 33 professores, continuou a publicar trabalhos científicos, com grande impacto no estrangeiro, dada a sua qualidade científica impar.
Abel Salazar para além de cientista notável, foi pedagogo, artista, prosador, crítico e filósofo, um autêntico homem do renascimento, que quis o azar viver em tempos negros de ditadura. Um dos aspetos interessantes deste livro de Jaime Mendes é a recolha e publicação, para além da correspondência, de um conjunto de artigos de Abel Salazar e também de Abílio Mendes. Nesses artigo se percebe, à semelhança de Bento de Jesus Caraça, a preocupação das maiores figuras da intelectualidade portuguesa em conseguirem chegar às pessoas e envolverem o povo na discussão e fruição daquilo que mais avançado o conhecimento humano tinha à época.
O seu afastamento do ensino leva-o a dedicar mais tempo à pintura. Em 1938, um grupo de amigos reúne a sua vasta obra e expõe-na na Sociedade Nacional de Belas Artes. As críticas nos jornais são-lhe altamente favoráveis. Artur Portela [pai do também jornalista Artur Portela Filho] apelida-o no “Diário de Lisboa” de “génio”, “O Diabo”, jornal que reunia os intelectuais que se opunham ao regime, descreve o homem: “Abel Salazar nosso eminente colaborador, é uma das figuras de maior relevo como cientista. É-o igualmente como escritor. É-o ainda como artista plástico. Para encontrar um homem que parece feito de pedaços de vários homens, todos notáveis, somos forçados a andar para traz nos tempo e recordar personalidades ricas, riquíssimas, geniais como houve algumas há quinhentos anos”.
Abel Salazar morreu em 29 de dezembro de 1946, em Lisboa, tinha apenas 57 anos.
A “Correspondência de Abílio Mendes com Abel Salazar”, de Jaime Mendes, permite-nos perceber melhor a dimensão humana do homem, e convoca à nossa memória, não só o mestre, como o seu discípulo Abílio Mendes, médico e antifascista, com uma carreira e obra notável, nomeadamente na formação de várias gerações de jovens médicos. Entre várias coisas, há um traço comum na vida destes dois homens, para além do apego à liberdade, a importância que davam à formação da juventude, ou da “mocidade”, como Abel Salazar escrevia.