«Me perdoa. Me ajuda». São as palavras finais de uma carta escrita por uma menina de 12 anos à sua mãe, confessando-lhe ser violada pelo pai.
A história passou-se em Manaus, no Brasil – mas poderia passar-se em qualquer cidade portuguesa.
O sensacionalismo noticioso em torno das violações coletivas serve também para ocultar a realidade persistente e quotidiana das crianças e adolescentes que são abusadas por familiares próximos – muitas vezes pelo próprio pai. Estas violações raramente são denunciadas, pelos dois motivos que esta menina refere claramente na sua corajosa carta: «medo» e «vergonha».
A «vergonha» advém, antes de mais, do sentimento de cumplicidade com o criminoso, comum entre as vítimas de abuso, em particular as mais jovens e mais próximas do abusador.
Escreve a criança: «Ele começou com uma história de que queria lutar. Eu queria que ele saísse de cima, mas depois eu deixei. Só que eu, na minha mente, nunca quis. Eu falava para mim ‘não, sai’, mas eu nunca falei para ele parar. Isso sempre me doía muito, mas eu sempre deixava. Eu decidi parar com isso».
Esta menina demonstra uma consciência de si mesma invulgar para a sua idade: a capacidade de separar o abuso do adulto sobre o seu corpo e a sua vontade individual levou-a à coragem de tomar uma decisão que acabasse com o suplício.
Confiou na mãe – que, aliás, se mostrou digna dessa confiança, levando imediatamente a carta à polícia e a menina ao hospital, onde a violação foi confirmada, sendo o pai preso.
Nem a mãe detetou previamente a violência de que a filha estava a ser alvo, nem ninguém na escola notou sinais dela – mas a criança sentiu que a mãe poderia ajudá-la.
Não é o que geralmente acontece: em muitas meninas abusadas pelos pais, o sentimento de traição e culpa em relação à mãe é mais forte do que a dor, a humilhação e a violência dos abusos.
Calam-se, julgando poupar as mães. Ou, pior, julgando que as mães não acreditarão nelas, e defenderão os abusadores contra elas – o que a realidade prova ser tristemente frequente.
Os homens que violentam as próprias filhas também violentam as mulheres, seja através de pancada ou manipulação.
A submissão à violência é tão contagiosa como a violência. E as mulheres que se acostumaram a ser maltratadas pelos maridos vêem em todas as outras mulheres, de qualquer idade, potenciais rivais.
É mais simples acusar outrem, seja quem for, do que enfrentar o monstro ou encarar no espelho a vítima consentida e cúmplice de um monstro.
É mais simples pensar que «os homens são assim» do que ousar sair do conforto do terror habitual e proteger uma criança.
Esta menina começa e acaba a sua lancinante carta a pedir perdão à mãe – porque se sente culpada de ter seduzido o pai. É nisto que dá a treta freudiana dos complexos de Édipo e Electra, mitologia romântica ao serviço da perversidade mais básica. É nisto que dá a educação judaico-cristã da culpa e do pecado, da Eva tentadora, e da obediência cega surda e muda aos mais velhos.
É por isto, antes de mais por isto, que temos de exigir uma educação laica, que cultive o amor-próprio como base de todo o amor, que fale tranquila e seriamente da sexualidade humana, do consentimento e do que não pode ser consentido, dos direitos e dos deveres de crianças e adultos.
Uma educação que, em vez de prevenir as crianças insidiosamente contra as obscuras maldades dos ‘estranhos’, as ensine a detetar e denunciar as atitudes ‘estranhas’ de quem quer que seja, a bem do seu bem-estar e da sua felicidade, sem medo de serem consideradas coniventes com as doenças mentais ou as fantasias dos adultos.
Sei que a grande maioria das mulheres da minha geração, neste país manso e soalheiro, foi alvo de abusos sexuais na infância ou na adolescência: no mínimo, um exibicionista anónimo, num comboio, ou um parente baboso e apalpador, num canto de corredor de uma festa de família; no máximo, a violação por um familiar próximo.
Aprendemos que os adultos têm sempre razão, que o sexo é um grande pecado ou uma vergonha e que dessas coisas não se fala.
A menina desta história conta que já tinha escrito outra carta, mas não teve coragem de a entregar. A persistência dos abusos e, sobretudo, a fé no amor da mãe, acabou por lhe dar essa coragem.
Milhares de outras meninas aguentam, caladas, humilhadas, envergonhadas, assustadas, a vida inteira. Primeiro, para resguardarem essas mães que não as souberam salvar; depois, para preservarem da violência dessa revelação os filhos ou os homens que amam.
Os criminosos contam com isso. Continuam a safar-se com isso.